Flores de Bergamo

Um pingado e um pão com manteiga na chapa. O velho Giovani era sempre um dos primeiros clientes. Há tempos trocou o balcão por uma mesa no canto da padaria. Além de aliviar a dor nas costas, poderia observar as poucas pessoas que ainda saiam apressadas para o trabalho. Irritou-se com uma gota do pingado que caiu na camisa branca que usava sempre por dentro da calça. Como fazia todas as manhãs, pegou a boina deixada sobre a mesa, ajeitou os suspensórios, pagou a conta e saiu. Apenas mais alguns passos e já estaria no seu destino.

A Flores de Bergamo funcionava há quarenta anos no mesmo local. Giovani a batizou em homenagem à cidade italiana onde nasceu. No mês de março, a cidade festeja quando o frio dá lugar às flores multicoloridas da primavera, encantando seus moradores que já podem circular pelos gramados sem as roupas pesadas do inverno. Enquanto caminha, o italiano das flores pensa nas notícias da noite anterior – não gosta de tevê, mas preocupa-se com os parentes que ainda moram na cidade devastada pelo vírus. A canaleta seca pelo tempo aumenta o desafio de levantar a porta. Falta graxa. As costas doem.

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Instalada num antigo barracão aberto nas laterais, a floricultura também está fechada, mas Giovani mantém a rotina de molhar, plantar e replantar mudas, conferindo atrás das folhas para afastar pulgões ou cochonilhas. Assim como as pessoas, as plantas também necessitam de cuidados. Algumas telhas de vidro garantem a iluminação. Dos dois lados, nos corredores repletos de verde, as samambaias dividem espaço com as avencas. Ao fundo, um pequeno pedaço de terra com mudas de onze horas, beijinhos e gérberas. Giovani se orgulha de sua coleção de orquídeas e dos bonsais. A técnica de encolher plantas, condenando-as ao nanismo, continua encantando o velho italiano. Acompanha embevecido as inúteis tentativas de crescimento e a atrofia resignada das plantas. Todos os dias observa os vasos de miniaturas, girando de um lado e de outro, para que nem um detalhe escape à sua cuidadosa vistoria. Algumas espécies não estão à venda. Como se desfazer daquelas pequenas crias que estão com ele desde o início? A solidão dos últimos dias fez as dores reumáticas aumentarem, e a percepção de que a humanidade poderia perder a luta contra um inimigo microscópico provocava imenso desânimo. Ele se sentia ainda mais velho.

Alguém bate, ele atende pela portinhola improvisada. Que mal há em atender aqueles para quem as flores são um alento em tempos de tragédia e isolamento? Reconhece a voz abafada pela máscara. Esther é cliente antiga e administra uma pequena loja de bugigangas herdada do marido. Mora nos fundos da loja, onde cultiva um jardim, e foi atrás de sua encomenda. Giovani busca a muda já crescida de ixória-rei, uma espécie mais imponente da família das Rubiaceae, com flores grandes e vermelhas. Não se esqueça de adubar a terra e de regar bem nos primeiros dias. Giovani não teve filhos e se desfaz das plantas como quem orienta uma mãe de primeira viagem. Depois do banho, olhe bem se lavou atrás das orelhas, se esfregou bem o encardido dos pés. Esther conhece bem o italiano que costumava dividir uma garrafa de vinho com seu marido, sempre falando alto e gesticulando sem parar. Cuide-se, meu amigo.

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Giovani ainda se recorda dos seis quilômetros da Muralha de Veneta, que dividem a medieval cidade alta, com suas ruas de pedra e seus prédios históricos, da modernidade da cidade baixa. Com as unhas sujas de terra, ele sabe que agora as belas e encantadoras imagens da Piazza Vecchia e da Catedral de Bergamo, cedem lugar a um amontoado de caixões lacrados, transportados em caminhões do exército. Diferente de cada planta daquele seu isolado universo, os corpos anônimos seguem o mesmo destino. Giovani pensa nas covas que recebem e envolvem raízes que se comunicam e fortalecem o que está acima da superfície. Acima da vala comum crescem apenas o medo e a tristeza. É preciso regar as mudas de jabuticaba que acabam de florescer.

Nunca mais voltou para a sua Bergamo. Enquanto fechava a porta emperrada, buscava dentro dele um vigor que minguava a cada dia. Respirava fundo. Carregar o próprio corpo cansado impunha cada vez mais esforço. Havia tempo para sentar um pouco na praça. Retirou o lenço dobrado do bolso, ajeitando no banco para proteger a calça. Debaixo de um guarda-sol colorido percebeu o conhecido vendedor de bilhetes de loteria. Tão velho quanto ele e vestindo um paletó surrado, o vendedor lhe ofereceu um bilhete – um número bonito que seria premiado, com certeza. Era final da tarde, e o sol aquecia como um abraço que não há. Olhou o bilhete e lembrou do tempo que não teria caso a sorte lhe visitasse.

A passagem do tempo era mesmo um mistério. Ele vendia mudas de palmeira imperial na floricultura. Elas podem chegar a 40 metros de altura. Durante os 40 anos em que cuidou de flores, seu bonsai feito com um pinheiro não passou de 30 cm. Os mesmos 40 anos que a palmeira levou para atingir a exuberância, o bonsai usou apenas para se manter vivo, na harmoniosa beleza conduzida por seu criador. Mas isso é besteira, cada um com o seu destino – mas o do bonsai eu que sei. Dobrou o bilhete e o colocou na carteira. Do seu destino, nada saberia. Levantou, pegou o lenço e foi para o pequeno apartamento onde morava há muitos anos. Vencer os quatro lances de escada era seu último desafio do dia.

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Na manhã seguinte recomeçou o trabalho rotineiro na floricultura. Era dia de adubar as orquídeas. Elas só seriam vendidas se florissem, e para isso precisavam ser nutridas semanalmente. A manhã estava fria, e o casaco dificultava o trabalho. Pensava nisso, irritado, quando bateram na porta. Sempre que precisava atender alguém vestia contrariado a máscara de pano feita por Esther. Um momento, já vou!

Os olhos claros e a testa larga muito branca lhe causaram uma fraqueza que há muito se transformara em lembrança. Lembrou-se de Lina. Não, Lina não tinha a testa larga. Nem percebeu o enferrujado da carcaça quando se esforçou para aprumar o corpo. Procuro uma orquídea cattleya, disse a voz abafada por uma máscara lilás com desenhos de pequenas flores amarelas. O pedido atiçou sua curiosidade. Seria uma colecionadora? Provavelmente não, cattleyas não são raras. Talvez o interesse por plantas tenha surgido nesse período de quarentena. Cansou-se da tevê e da limpeza da casa. Antes de responder, esfregou as mãos no avental e lembrou que havia interrompido a adubação. Levantou a porta na altura suficiente para que a cliente entrasse sem ter de se abaixar demais. A beleza do corpo não tão jovem, mas com as firmezas que lhe faltavam há muito tempo, se impôs sobre o distanciamento pessoal daqueles dias. Animou-se em falar de suas orquídeas.

Lina morreu há vinte anos. Após um breve namoro, se casaram na Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, naquele mesmo bairro. Quando não ajudava na floricultura, a mulher fazia pequenos serviços de costura. Trocar um zíper ou fazer as barras de uma calça logo se tornaram um sacrifício doloroso diante do reumatismo precoce. O tratamento prolongado da mulher fez com que Giovani se dividisse entre a administração da floricultura e os afazeres domésticos. Um câncer diagnosticado tardiamente matou Lina em apenas três meses. Giovani nunca pensou em se casar novamente. Cercou-se das plantas, e dedicou seu tempo a mantê-las vivas e sadias. Sabia que as plantas possuíam mistérios, e as imaginava dotadas de um certo tipo de inteligência, de sensibilidade para se protegeram dos perigos. As raízes, o segredo estava nas raízes que se comunicavam em redes, se adaptando e reagindo ao ambiente. Pensava nas suas próprias lembranças como raízes que o sustentavam durante a sua existência.

Explicou que as cattleyas eram muito procuradas. São epífitas, vivem longe do solo, apoiadas sobre outras plantas, em galhos ou troncos, mas sem causar danos. Não são parasitas. São admiradas pelas flores grandes, variadas em tamanhos e cores. Amarela, eu procuro uma amarela. Dessa vez, Giovani não chegou a soltar aqueles grunhidos habituais, uma reação automática quando não possuía a planta procurada por alguém. Tirou o lápis e o bloquinho do bolso do avental e anotou nome e telefone. Uma semana era tempo suficiente para satisfazer aquele pedido. Uma orquídea cattleya amarela era seu objetivo para os próximos dias. Acompanhou a freguesa até a porta. Ao virar-se flagrou o olhar que conferia suas formas. Giovani enrubesceu, mesmo sabendo que a mulher já ia longe.

Inquietou-se quando se deu conta de que, com a epidemia, talvez não fosse tão simples conseguir a orquídea. As entregas estavam falhando, mas não poderia decepcionar a freguesa. Pensou que se não conseguisse com os fornecedores habituais, poderia bater na porta de um amigo colecionador, para quem garimpava espécimes raras. Ele deveria ter uma catleya amarela, e depois, quando a encomenda chegasse, devolveria. Perdeu o sono, a orquídea tirando seu sossego. Ou seriam os olhos verdes e a testa larga, prenúncio de um rosto bonito, escondido pela máscara?

Passou os dias seguintes em sobressalto. No caminho para o trabalho, ansiava em encontrar a mulher. Diria que sim, claro, entregaria a flor, conforme combinado, era homem de palavra. Durante o café na padaria, os olhos procuravam nas mulheres que passavam o andar cadenciado que fez seus olhos brilharem. Imagina, era o que faltava, nessa idade, não se enxerga? Ajeitava a camisa, levantava o peito e de novo a catleya amarela. Seria capaz de reconhecer na multidão os olhos e a voz que tinha ouvido uma única vez. Sim, quero uma amarela. Sim, semana que vem passo aqui. E o ritmo dos passos, Dio Mio? A cadência discreta. Claro que percebi pequenas rugas quase escondidas pela máscara, mas e a vivacidade nos olhos?

Dormiu mal aquela semana. Sem fome também, a boca seca e o coração sem sossego. Chegou mais cedo na floricultura naquela sexta-feira. Queria preparar a catleya sem pressa. Ajeitou as hastes com flores, prendendo-as com pequena presilha, conferindo o perfume. Passou pano úmido nas folhas verdes muito firmes para tirar alguma poeira, e embrulhou o vaso num papel vistoso. Ouviu batidas na porta. Levantou-se lépido, sem dores, quase esboçando um sorriso e foi atender.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

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