No cemitério em noite de lua cheia

Imagem: arte a partir de foto UVA

Cheirou as axilas, certificando-se do desodorante. Na frente do espelho manchado do guarda-roupa, ajeitou os cabelos. Sorriu puxando os lábios o máximo possível e aproximou o rosto do espelho para conferir a limpeza dos dentes. Passou perfume na nuca, no peito e nos pulsos. Agora sim, estava pronto. Otávio guardou a carteira no bolso do agasalho, pensou que teria que encarar um ônibus e o metrô, mas se tudo corresse bem em menos de uma hora estaria lá.

De madrugada costuma esfriar, ela pensou enquanto ajeitava a calcinha fio dental. Com a mão direita suspendeu um pouco a bunda e soltou rapidamente, conferindo a firmeza que se mantinha a custa de alguns exercícios diários. Escolheu uma jaqueta que combinava com a saia muito curta e os sapatos vermelhos. Sabrina conferiu a maquiagem, carregou um pouco mais na cor dos olhos. Orgulhava-se das unhas compridas e bem pintadas. O cabelo hoje não estava no melhor dia, escovou-os inclinando a cabeça para baixo para dar volume. Olhou em volta para a bagunça do quarto. Roupas pelo chão e a capa da revista mostrando foto de Fábio Assunção. Apesar de pequeno e pouco ventilado, a vantagem era que o quarto alugado ficava próximo ao seu ponto, e também perto de hotéis onde atendia os clientes.

Otávio ficou ressabiado com dois rapazes vestindo moletom com capuz que se aproximaram. Por sorte o ônibus logo encostou e os três embarcaram. Ele passou logo a catraca e os dois permaneceram na parte de trás. Ficou meio paranoico desde que presenciou um assalto nessa mesma linha, quando levaram seu celular e o relógio falsificado. Quinze minutos depois desceu, e aliviado ainda teve tempo de observar as duas cabeças cobertas no último banco do ônibus que fazia a linha 176. Era supersticioso, e quando aconteceu o assalto tentou a sorte no jogo do bicho. Ainda teria de caminhar mais vinte minutos até o metrô mais próximo. Antes parou numa padaria. Enquanto observava o noticiário na tevê, abaixou um pouco a máscara para beber o café servido no copo descartável. Odiava café em copo descartável, mas o funcionário explicou que era recomendação da vigilância sanitária. Na repartição pública onde trabalhava, desde o surgimento da pandemia cada funcionário passou a ter sua própria xícara. Pagou com uma nota de cinco reais e acelerou um pouco o passo.

Depois de cumprimentar as parceiras que já enfrentavam o vento gelado, Sabrina se posicionou estrategicamente num ponto de grande visibilidade. Apesar de curta, a saia foi puxada um pouco mais para cima, a fim de se exibir melhor aos olhos sedentos dos motoristas que transitavam em velocidade reduzida. Um Peugeot preto encostou e o vidro desceu lentamente. Ela se aproximou e ao ouvir sua voz o homem acelerou. Experiente, ela logo imaginou se tratar de um homem casado à procura de travestis. Aproveitavam a saída do trabalho para encontros secretos, antes de retornarem para suas casas. Sabrina já havia escutado muitas histórias de clientes e não se importava. O valor do programa era o mesmo, para sexo ou conversa.

O amigo Roberto morava em uma quitinete com pequena varanda de frente para a rua. Ultimamente Otávio fazia visitas frequentes. Com a desculpa do cigarro, ele entrava no apartamento e ia direto para a varanda, e ali ficava o tempo todo sentado num canto, olhando de cima o movimento das mulheres. Roberto preparava um lanche ou colocava roupas na máquina enquanto conversavam. Contou que o movimento na rua havia diminuído com a pandemia, e que as mulheres abaixavam a máscara quando um carro se aproximava.

– Imagine o susto de alguns, comentou rindo. Em alguns casos é melhor com o rosto coberto.

Otávio concordava sem prestar muita atenção ao que o amigo falava. Não tirava os olhos da moça de saia curta e sapatos vermelhos.

– Esses caras são doidos. Imagine o risco que correm com o vírus solto por aí, comentou, esperando que Otávio concordasse. Mas ele nem se atentou, os olhos ansiosos grudados num carro que parou e rapidamente abriu a porta, levando a moça. Foi tudo muito rápido. Suspirou mal humorado, virando as costas para a rua. Roberto disse que iria tomar banho, e depois dividiriam uma cerveja que estava no freezer. Contrariado, imaginou a moça rindo, tirando os sapatos, jogando-se nua na cama para o desconhecido. Beberiam um drinque antes? Fumariam um cigarro depois? Sobre o que falariam? Por um instante pensou que o homem poderia ser violento, mas logo concluiu que ela saberia como sair de situações como essa.

Uma única vez se aproximou. Era uma noite quente, e o amigo não estava em casa. Sentou em uma mesa na calçada num bar em frente e bebeu para criar coragem. A beleza e desenvoltura da moça o constrangiam. Naquela noite o movimento estava fraco e as mulheres estavam em duplas, conversando em frente ao bar. Foi quando descobriu seu nome. Hesitando, levantou-se e caminhou em direção a Sabrina, a boca seca e o coração aos pulos. Estava a poucos metros quando começou a sentir palpitações e calafrios. Ficou paralisado, não conseguia dar nem um passo, uma sensação de morte. Jogou o dinheiro em cima do balcão e não esperou o troco, apavorado. Saiu apressado para a rua. Sem saber que rumo tomar, olhou para o céu como que pedindo ajuda, sentindo-se incomodado pelo brilho da lua cheia que iluminava aqueles becos malcheirosos. A frustrada experiência o fez desaparecer dali por um bom tempo. Nos dias que se seguiram, sempre que se lembrava do ocorrido considerava-se injustiçado com o que acreditou ser uma trapaça do destino.

Otávio nasceu numa cidade do interior. Na pequena Salto Grande, o pescador Juca Oliveira casou com Francisca de Paula. Os filhos vieram cedo, mas só depois de Doralice, Vera, Luiza, Judite, Rita de Cássia e Sônia é que surgiu o pequeno Otávio. Criado e paparicado por tantas mulheres, o menino estudou e cresceu. Já moço, e para desespero da mãe e das irmãs, mudou-se para São Paulo, onde foi operador de máquina xerox, motorista de empilhadeira em uma distribuidora de bebidas e finalmente foi aprovado num concurso público. Um de seus prazeres era frequentar uma minúscula casa de shows eróticos na rua Aurora. Às sextas-feiras ele se acomodava em uma das cadeiras do apertado espaço. Homens e mulheres exibiam suas performances e o show culminava com um casal em cena de sexo explícito num palco de pouco mais de meio metro acima do chão. Na volta para a casa ele parava pra comer um cachorro quente.

Otávio talvez não tivesse percebido, mas as noites de lua cheia passaram a ser especialmente difíceis para ele. Era quando a memória insistia em trazer de volta o vexame da noite em que não conseguiu se aproximar da moça de sapatos vermelhos. Tentava aliviar a ansiedade e o incômodo no show erótico, mas a sensação de estranheza não passava.

Já fazia algum tempo que não via o amigo Roberto, nem a prostituta que lhe tirava o sono. O trajeto era longo, mas resolveu ir a pé. O caminho passava por um cemitério tradicional, com bancas de flores na esquina. Foi andando devagar, observando estátuas de anjos e cruzes que apareciam por detrás do muro alto. O portão de ferro tinha ornamentos e uma corrente. O cadeado estava pendurado, porém aberto. Parou em frente ao portão, e ficou observando os túmulos, alguns com vasos de flores de plástico. Sentiu-se atraído por aquele lugar. Olhou em volta, não havia ninguém. Abriu o portão e entrou.

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A noite clara facilitava o caminhar pelos túmulos, observando enfeites e os dizeres das placas. Pensava em Sabrina. Por que não conseguia se aproximar? Era uma prostituta, ia para a cama com qualquer um, não oferecia resistências. Então o que tinha aquela mulher que o fazia sentir-se tão incapaz?  Foi aumentando sua revolta por ter sido transformado num menino medroso, trêmulo e confuso. Alguém ouvia música por ali: Impérios de um lobisomem que fosse homem… Logo reconheceu Zé Ramalho no radinho de pilha do vigia. O velho jogou o cigarro no chão e apontou a lanterna para Otávio: Como entrou aqui? Não pode, tem que sair! Enquanto acompanhava Otávio até o portão, o vigia pensava nos loucos que se metiam a visitar cemitérios no meio da noite. Otávio ouvia seus resmungos quando o portão se fechou atrás dele. Ainda teve tempo de perceber o cadeado que, talvez por distração, o homem manteve aberto.

Notou um vira-lata que começou a persegui-lo. O animal não incomodava, apenas seguia junto. Imaginou ele próprio um vira-lata vagando solitário e sem importância pelas ruas, incapaz até mesmo de abordar uma prostituta vulgar. Onde estaria Sabrina naquele momento? Ela poderia compreender seus tormentos, a sua angústia diante da incontrolável sina de transformar-se em algo terrivelmente rejeitado. Um único uivo do vira-lata bastou para que uma pequena legião de animais se reunisse em torno de Otávio. Haveria de encontrar Sabrina ainda naquela noite.

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Lá estava ela, os mesmos sapatos vermelhos e a bunda levemente à mostra. Quase nenhum carro circulava naquele momento, e junto de Sabrina apenas duas outras mulheres teimavam em resistir na noite fria. Otávio mirou a lua tão brilhante e se aproximou das três. Sabrina se assustou com a chegada repentina daquele homem cercado de cachorros. Ele pensou que nunca tinha ficado assim tão perto dela. As outras duas se afastaram e à frente daquele corpo arrepiado, sentiu sua boca salivar.

– Eu tenho um local especial e posso pagar o dobro, disse ele.

Sabrina hesitou um pouco, mas o frio da noite espantava qualquer possibilidade de movimento. Acomodaram-se no banco traseiro de um Uber e poucos minutos depois saltaram a uma quadra do cemitério. Ela já havia conhecido todos os tipos de clientes, mas era a primeira vez que alguém surgia com esse tipo de tara. Pensou no pagamento em dobro e seguiram na direção do portão. Aproveitaram a ausência do vigia e se enfiaram pelas ruas escuras.

Pararam na frente de um túmulo antigo. Sabrina sentiu certo pavor, mas era tarde para voltar atrás. Sentiu um cheiro forte que lhe queimava as narinas. A lua iluminava parte do rosto de Otávio. Ela teve a impressão de que não se tratava do mesmo homem que há pouco havia se aproximado dela e de suas parceiras. Sentiu as mãos pesadas e quentes de Otávio envolver seu pescoço. Um uivo ecoou na noite despertando latidos por todos os lados.

O vigia explicou que encontrou a mulher sobre o túmulo na sua última ronda, quando já amanhecia.  Lembrou-se daquele homem estranho que circulava por ali naquela noite. Sob a calcinha e o sutiã jogados ao lado do corpo, os policiais notaram a inscrição em letras grandes e douradas: “Não deis aos cães o que é santo”.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

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