A lista dos demônios de Bergman

Imagem: Reprodução

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Crônica de Luiz Carlos Seixas

Dizem que o frio desse ano promete. Vai ver, é porque nesse ano tem eleição. Realmente, essas noites de outono já estão piorando a hora do banho; em alguns casos, fazendo até com que ela passe despercebida. Com a volta antecipada dos caldos ao cardápio e o varal de casa parecendo uma arara de brechó, fica mais fácil de acreditar. Tem gente que abomina o frio, como tem gente que odeia brechó. Tem gente que come pinhão e acha bom. E tem gente que come porque dizem que retarda o envelhecimento.

Pois sempre que bate um frio eu me lembro de Ingmar Bergman. Difícil pensar em alguma coisa que não me faça lembrar de Ingmar Bergman. Nem a feijoada do Berlin aos sábados? Não, nem a feijoada. Bergman esteve refugiado em Berlin (a cidade) na década de 1970, e a família que toca o restaurante parece que a qualquer momento vai arrebentar como uma corda do violão.

Assim como Stanley Kubrick um dia trocou New York por Londres, para nunca mais voltar; Ingmar Bergman trocou Estocolmo e as demais capitais da Europa por uma ilha que conheceu aos 40 anos de idade. Desembarcado em Farö para rodar um de seus filmes ainda em branco e preto, Bergman disse ao fotógrafo Sven, “é aqui que eu quero viver”. E de fato, mudou-se para a ilha, onde construiu uma casa de 400 metros quadrados de frente para o Mar Báltico.

Como jamais poderei viajar à Suécia, apelei para o Google Maps. Então, descobri que Farö é, na verdade, um rabicho da ilha de Gotland, afastada 100 quilômetros do continente sueco, à qual se chega através de uma segunda balsa. Não bastava morar na Suécia, dentro de um mar gelado; Bergman precisava ir mais longe, até aquele puxadinho de pedras para se sentir em casa!

“A Ilha de Bergman” é um documentário lançado em 2004.

No documentário “A Ilha de Bergman”, as primeiras palavras do gênio do Cinema são para justificar suas caminhadas matinais: “Os demônios não gostam de ar puro. Eles gostam é que você permaneça na cama com os pés frios”. Farö é uma paisagem sem cor que aos poucos vira cinza e depois anoitece. Vejo Bergman rodar entre os dedos a aliança que seu pai usava em 1913. Ou contar o pedido que fez ao arquiteto para ter uma janela da sala principal voltada para o mar, de forma que pudesse assistir às tempestades de gelo.

Bergman permaneceu sozinho naquela casa os últimos 12 anos de sua viuvez, às vezes passando dias sem falar com ninguém, tampouco ao telefone, ouvindo apenas o pêndulo dos relógios. Perguntado sobre os seus demônios, Bergman tira do bolso da calça um papelzinho. O papel é realmente pequeno e me agrada que sua letra (de fôrma e não cursiva) se pareça com a minha. Ele o segura com as mãos trêmulas de um réptil de Galápagos e recita, um a um: As catástrofes, no sentido do desastre que a tudo interrompe. O medo de tudo: gatos, cães, insetos, pássaros; de certo tipo de pessoas e, sobretudo, das multidões. A sua própria ira, que Bergman acredita ter herdado dos pais. O rancor, que pode ser confundido com sua memória de elefante. O demônio do pedantismo, o demônio da pontualidade, o demônio da ordem… E do outro lado do papelzinho, Bergman anotou o demônio do nada, do vazio, que ele haveria de experimentar quando a sua criatividade ou imaginação o abandonassem. “Mas isso é algo que nunca me ocorreu, pelo que sou sumamente agradecido”, diz.

Ingmar Bergman morreu pouco depois de participar dessas filmagens. Foi sepultado numa cova rasa, ao lado da esposa, nos fundos da capela de Farö. Há apenas uma pedra com o nome dos dois e suas respectivas datas, na grama, entre flores rasteiras.

  • Crônica escrita em 29 de maio de 2016.