Neusa Fleury: A Estrela que iluminou a Cultura de Ourinhos

Neusa Fleury Moraes

por Bernardo Fellipe Seixas

Neusa Fleury Moraes nasceu sob o signo da inquietação e do talento, em São Paulo, no dia 19 de abril de 1956. Filha dos professores Celso e Maria de Fátima, cresceu em um ambiente onde os livros, os discos e as perguntas sobre o mundo eram companheiros constantes. Como a irmã mais velha de Neide, Sérgio, César e Cibele, Neusa carregava no olhar a arte que herdou do pai, um intelectual voraz, diretor de teatro, que ensinou aos filhos que a vida, sem cultura, era mera sobrevivência.

Neusa e sua gatinha Pepita, anos 1990.

Sua infância e juventude transcorreram entre cidades do interior paulista, como Santo Anastácio, Agudos e Santa Cruz do Rio Pardo, onde manteve os pés no chão e a cabeça repleta de sonhos. No Instituto Musical de São Paulo, hoje Faculdades São Judas, conheceu Luiz Carlos Seixas, seu companheiro por quase três décadas. Juntos, tiveram três filhos: Bernardo Fellipe, em 1979, Gabriela, em 1981, e Glauber, que nasceu no inverno de 1985.

Neusa com o ex-marido Luiz Carlos Seixas e os filhos Glauber (esquerda), Bernardo (centro) e Gabriela (direita).

Quando chegou a Ourinhos, em 1984, a cidade ainda tateava nas sombras da cultura. Seu primeiro contato com a cena artística local foi um espetáculo do grupo Joá, na Praça Mello Peixoto. Crianças dançavam no chão, sem palco, iluminadas apenas pelos faróis dos carros dos pais. Aquele momento acendeu em Neusa uma certeza: era preciso mais. Mais luz, mais cor, mais espaço para a arte respirar.

E ela fez. Com uma casa alugada de quatro cômodos na rua Pará e dando aulas nas escolas Josepha Cubas da Silva e Virgínia Ramalho, Neusa começou a transformar a história da cidade. Indicada pelo professor Hercílio, assumiu a regência do coral da Seicho-No-Ie. Poucos meses depois, criou o Cobra Coral, um grupo vocal com quase 40 integrantes que ecoou por cidades de São Paulo e Paraná. Ao lado da amiga Cecília Einstoss, ensinava musicalização a crianças, fazendo brotar melodias onde antes havia silêncio.




Nos anos 1990, sob o governo de Claury Santos Alves da Silva, Neusa assumiu a Diretoria de Cultura, subordinada à Secretaria de Educação. Sem medo da falta de recursos, armada apenas com sua paixão e a parceria de Denise Freire (in memoriam) e Rose Guidetti, criou as Escolas Municipais de Música e Dança de Ourinhos. O time das meninas do teatro cresceu com a chegada de Walquíria Ramalho. Tudo funcionava em uma minúscula sala que hoje abriga o borderô do teatro, com uma disputada linha telefônica e sem veículo para transporte. Mas eram tempos de milagres: Ourinhos chegou a ter cinco bibliotecas, incluindo a Tristão de Atayde, Vila Margarida e Odilon, além de duas bibliotecas móveis que levavam histórias onde não havia páginas. Ainda na gestão de Claury, iniciaram-se as obras do Centro Cultural.

Foto: Luiz Carlos Seixas / Acervo Jornal Biz

Neusa não apenas fomentava a cultura; ela a fazia acontecer. Ao lado do amigo Sérgio Nunes Faria, criou o Circo da Cultura Popular, um espaço onde crianças e adolescentes aprendiam a arte circense e o encanto do teatro. Em 1993, ajudou a fundar o Grupo Teatral Soarte, que permanece ativo até hoje. “O Sérgio é o pai do Soarte, e a Neusa é a mãe”, declarou Leandro Faria, atual diretor do grupo. Convidada pelo então prefeito José Carlos Damasceno, encontrava tempo para comandar, uma vez por semana, o coral da terceira idade, com encontros/ensaios noturnos realizados em São Pedro do Turvo.

Cobra Coral, 1990.

Fez Ourinhos dançar. Entre 1994 e 1996, estimulou a criação de escolas de samba e blocos carnavalescos, que desfilavam na avenida Altino Arantes. Em dezembro de 1996, celebrou a inauguração do Centro de Convivência Benedito da Silva Eloy, do Museu Municipal e do Núcleo de Cultura Popular. A transferência da área da Fepasa para a prefeitura e o restauro das casas contaram com o apoio fundamental de Zélio Alves Pinto, secretário estadual da cultura e irmão do Ziraldo.

Fotos: Luiz Carlos Seixas / Acervo Jornal Biz
Obras de restauração do Centro de Convivência. Da esquerda para direita: Zélio, Carlos Parisotto, Evandro Eloy e Neusa Fleury. | Foto: Luiz Carlos Seixas / Acervo Jornal Biz

Em 1997, Neusa foi convidada a comandar a Secretaria de Cultura de Santa Cruz do Rio Pardo. Lá, liderou a restauração completa do Palácio da Cultura Umberto Magnani Neto, devolvendo-lhe a dignidade do passado. Com o antigo professor Mário Nelli, coordenou a gravação do hino oficial da cidade. Juntamente com seu pai, ela fundou a ONG Associação Proarte, para compensar a falta de recursos municipais para essas obras.




Em 2001, retornou a Ourinhos a convite do prefeito Claudemir Ozório Alves da Silva. Criou a Secretaria Municipal de Cultura, inaugurou o Centro Cultural Tom Jobim e deu vida aos Festivais de Música, Dança, Teatro e à Semana do Folclore. A cultura ganhou orçamento próprio, e Ourinhos começou a ser conhecida como “a cidade dos festivais”.

Contando com a presença do músico Paulo Jobim, filho de Tom, o Centro Cultural foi inaugurado em Julho de 2003 durante o III Festival de Música de Ourinhos. Naquele ano, estudavam no local 1.200 alunos nas escolas de música e bailado.

Foi sócia do filho Bernardo Fellipe, de 2003 a 2024, na Ipê Editora de Ourinhos. Realizaram projetos culturais para empresas privadas, consultoria em comunicação e marketing, capacitação profissional para professores, editaram livros e promoveram eventos de grande porte como a Feira do Livro do Colégio Camões, em Santa Cruz do Rio Pardo, entre outras atividades.

Entre 2005 e 2007, Neusa deu aulas e criou um coral com crianças em uma escola de Canitar, a convite do então prefeito Anibal Feliciano. Nessa época, a convite do empresário Roque Quagliato, foi regente do coral da Universidade Aberta da Terceira Idade  das Faculdades Integradas de Ourinhos, atual Unifio. Em 2006, comandou a equipe que produzia a versão “ourinhense” do Jornal Debate, de propriedade de seu irmão Sérgio Fleury.

Em 2007, Neusa venceu um concurso literário promovido pelo jornal O Estado de São Paulo, e integrou o juri do Festival Internacional de Cinema de Gramado. Na foto, com o ator Walmor Chagas.| Foto: Arquivo pessoal

Em 2007 foi convidada pelo prefeito Toshio Misato para retornar ao comando da cultura, rompendo uma rivalidade histórica entre grupos políticos. Neusa pediu liberdade para montar sua equipe de trabalho, e “uma ajuda” para aumentar o orçamento da pasta dobrado. Toshio deu carta branca para Neusa, e dobrou a receita da secretaria. Os cinco anos seguintes ficaram conhecidos como “era de ouro da cultura de Ourinhos”.

Entre 2008 e 2012, Ourinhos tornou-se referência nacional em cultura. “A cidade dos festivais” ganhou destaque na grande imprensa. Nomes consagrados da música, dança e literatura desfilaram pela cidade: Dominguinhos, João Carlos Martins, Isaac Karabichevsky, Júlio Medaglia, Chiquinho de Moraes, Hermeto Paschoal, Edmundo Vilani-Cortes, Antônio Carlos Neves, Ian Guest, Bob Wyatt, Heraldo do Monte, Cristóvão Bastos, Maurício Carrilho, Toninho Horta, Nailor Proveta, Arismar do Espírito Santo, Mário Bortolotto, Ignácio de Loyola Brandão, Luiz Ruffato, Sérgio Vaz, Michel Laub, Lourenço Mutarelli, Marcelino Freire, Antônio Nóbrega e tantos outros.

Festival Literário Aogosto das Letras, 2014. Da esquerda para a direita: Neusa Fleury, Marco Aurélio, André Dahmer e Marcelo Mirisola.
Show de Dominguinhos no Centro de Convivência, durante o Festival de Música, julho de 2011. | Foto: Renato Seixas

Em 2010 a prefeitura iniciou o Edital de Fomento Cultural, destinado a incentivar os projetos dos artistas locais. Projetos culturais percorreram os bairros de Ourinhos como o Samba e Botequim, oficinas de capoeira, desenho, percussão, grafite, leitura, escrita criativa, atividades de preservação da memória, cinema no bairro e exposições itinerantes, entre outras ações.

Certa vez, questionada sobre o segredo para produzir tantos eventos incríveis, ela respondeu sem hesitar: “Equipe”. Sua liderança era uma lição de generosidade. Trabalhava ao lado, nunca acima. Não à toa, os que estiveram com ela a chamavam de “mãezona” e “irmã”. Era essa Neusa que encantava, inspirava e transformava.

Deixou a Secretaria de Cultura no último dia de 2012. No ano seguinte, assumiu um cargo secundário na gestão de Belkis Gonçalves, até ser exonerada em 2014. A cena cultural da cidade nunca mais foi a mesma.

Marco Aurélio Gomes e Neusa Fleury são os autores de “Divina Comunhão – Festa de todos os sons”, sobre os 10 anos do Festival de Música de Ourinhos.

Mas Neusa não parou. Com seu marido e companheiro Marco Aurélio Gomes, escreveu livros: Divina Comunhão – Festa de Todos os Sons (2010) e Um Olhar Sobre a Presença Japonesa em Ourinhos (2008). Lançou Me Voy Me Vengo (2018), um livro de poesias dedicado à sua bisavó espanhola. Incentivou o filho Bernardo Fellipe a criar o Jornal Biz, primeiro portal de conteúdo eletrônico de Ourinhos e região. Com Marco Aurélio, Rogério Augusto Singolani e Bernardo, produziu a série 100 Anos Ourinhos, um mergulho na história da cidade que se tornou a maior série jornalística ourinhense.

Até o início da pandemia, Neusa realizou trabalho voluntário no Projeto Acolher, no Jardim Itamaraty. Com o marido Marco Aurélio e o amigo Neguitinho, criaram o projeto de percussão e música.

Nos últimos cinco anos, acometida por insuficiência renal, Neusa encontrou forças para continuar fazendo arte. De mãos dadas com Marco, aprendeu a fazer kokedamas, uma técnica japonesa de cultivar plantas em esferas de musgo. A “Casa do Kokedama” percorreu feiras da cidade, impressionando a todos pelo esmero no acabamento das peças.

Em 2022, uma nova paixão: abelhas sem ferrão. Neusa e Marco transformaram o jardim de sua casa no Meliponário Dona Xica, criando abelhas das espécies jataí, mandaçaia e irapuá. O mel e o própolis produzidos eram dados aos amigos mais próximos.

Caricatura feita pelo arquiteto Narciso Calegari, em 1996. | Acervo Jornal Biz

Neusa Fleury Moraes nunca precisou de religião para entender a grandeza do bem. Viveu com ética, amor e uma inquietação inextinguível contra injustiças e desigualdades. Detestava palavrões, mas ao longo da vida ouviu incontáveis vezes: “Neusa, você é foda”. E era mesmo.

Neusa e Marco na Praça Mello Peixoto, centro de Ourinhos.

Neusa morreu aos 68 anos no dia 18 de março de 2025, por complicações após um transplante de rim na Santa Casa de Londrina. Não houve velório e seu corpo foi cremado, como ela havia determinado aos familiares. O prefeito Guilherme Gonçalves decretou luto oficial de três dias em Ourinhos. Neusa deixa o marido Marco Aurélio Gomes, os filhos Bernardo Fellipe Seixas, Gabriela Fleury Seixas e Glauber Henrique Seixas, os netos Leonardo Seixas Christino, Caetano Chueiri Seixas, Carolina Seixas Christino e Gael Freire Cândido, os irmãos Neide, César e Cibele, a enteada Vitória Freire, os genros Paulo Christino e Luan Cândido, a nora Brenda Cardin e muitos, muitos bons amigos.

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