Lídia Benitez e a vocação para ensinar

Foto: Fernanda Botelho

Um grupo entra numa loja do centro da cidade e as pessoas começam a ler os cartazes das promoções. Ou então caminham pelas ruas identificando as placas de sinalização e outdoors. Quem acompanha o grupo, orientando e tirando dúvidas, é a professora Lídia Benitez, coordenadora do Para ler o mundo, curso de alfabetização de adultos realizado há nove anos e que atualmente acontece às terças e quartas no Museu Histórico de Ourinhos. Hoje Lídia está aposentada, mas continua à frente do curso como voluntária.

Projeto iniciou em 2010, e aulas aconteciam na ‘Casinha da Esquina’, no Centro de Convivência. | Foto: Fernanda Botelho




A história de Lídia com a educação começou bem cedo, quando ficava observando as professoras que se hospedavam na pensão da avó, na cidade de Lucianópolis: “As professoras vinham de Garça, Marília e Bauru, e ficavam a semana toda na pensão. Elas corrigiam os cadernos que minha mãe ajudava e encapar”. Ela conta que ficava ali olhando e ouvindo as histórias dos presentes que as professoras ganhavam dos alunos, como frutas e legumes: “Fui pegando gosto e resolvi fazer magistério”.

EMEI Vinícius de Moraes, no Jardim Ouro Fino, década de 1970. | Foto: arquivo pessoal

Foi em Lucianópolis que os pais se conheceram. Rufino Benitez havia chegado do Paraguai e se estabeleceu na cidade. Lá conheceu a família de espanhóis que tocava a pensão e Belizária Martins, que se tornaria sua mulher. Habituado a tomar chimarrão, Rufino se dedicou ao cultivo de erva mate. Já casados e com quatro filhos, os pais de Lídia resolveram se mudar para Ubirajara: “Em Lucianópolis só tinha escola até a quarta série, e meu pai resolveu mudar para que os filhos pudessem estudar”. Em Ubirajara Rufino continuou plantando erva mate e Lídia ainda se recorda de quando acompanhava o pai: “Íamos para o sítio de caminhão e ele fazia um fogo para sapecar a erva e diminuir o volume, facilitando o transporte. Ficava murcha, não queimava, só passava na labareda. Meu pai levava uma carne  e aproveitávamos para fazer um churrasquinho”. Lídia conta que o pai colocava a erva para secar no quintal e depois socava tudo no pilão. “Meu pai guardava o mate no sótão, anotando as datas, e ia consumindo por ordem, sempre pelo mais velho”. Rufino conheceu o filho do prefeito de Ubirajara, que também gostava de consumir erva mate. Quando soube que o pai de Lídia socava a erva no pilão, o rapaz ofereceu a máquina de beneficiar arroz para triturar a erva, facilitando o trabalho.




Rufino Benitez também aprendeu o ofício da barbearia, que acabou transmitindo aos dois filhos homens. Lídia diz que já alimentava o desejo de continuar estudando, mas naquele tempo as moças iam para um colégio interno de Marília: “Éramos duas, meu pai era barbeiro e não tinha dinheiro para isso”. A família acabou se mudando para Ourinhos, onde o pai assumiu um salão que existia no fundo do tradicional Café Paulista, na Praça Mello Peixoto. “Tinha seis cadeiras e meu pai trabalhava com meus dois irmãos. Eu levava marmita para eles antes de ir para a escola, no Horácio Soares”.

E foi no Instituto de Educação Horácio Soares que Lídia concluiu o magistério. Seu interesse era cursar Ciências, mas não havia faculdade na cidade, e acabou optando pelo curso de Educação Física, em Assis. Havia apenas um problema, ela não sabia nadar e essa era uma condição obrigatória para ingressar no curso: “Fui trabalhar como estagiária na escola Virginia Ramalho para poder pagar um curso de natação. Aprendi a nadar e fiz a faculdade”. Lídia começou a trabalhar na escola Maria Auxiliadora para manter a faculdade; trabalhava de manhã e estudava à noite. Depois de terminar a faculdade e casar, ela voltou ao Horácio Soares, agora como professora.

Campeã de natação em JORI (Jogos Regionais do Idoso) realizado em Ilha Solteira. | Foto: arquivo pessoal

Lídia trabalhou também na escola Josepha Cubas da Silva, e se dividia entre escolas do Estado e da Prefeitura. Quando passou no concurso do governo do Estado, teve de assumir na cidade de Suzano: “Pedi afastamento da prefeitura e fui pra lá com meus três filhos”. Algum tempo depois, Lídia voltou para Ourinhos e assumiu novamente uma vaga na escola Josepha Cubas, além de retomar o trabalho na prefeitura: “Trabalhei no antigo Prosemo, dando aulas de dança, e no Monstrinho fui dar aulas de natação”. Lídia trabalhou ainda no Centro Social Urbano, ministrando aulas de natação e hidroginástica.




Na década de 1990, Lídia dava aulas de hidroginástica no CSU. | Foto: arquivo pessoal

Quando montou o projeto Para ler o mundo, Lídia aproveitou a experiência que adquiriu durante os quinze anos em que trabalhou com alfabetização na escola Josepha Cubas.  “O projeto nem sempre foi bem compreendido, porque muitas vezes os alunos preferem ficar comigo onde as regras são mais flexíveis, do que no EJA. Eu tinha aluno que era cuidador de idoso, tinha dia que morria de sono, tinha aluno que precisa ficar com os netos ou cuidam dos pais. Então eu não tenho chamada, quando a pessoa não pode ir, não vai”.

Primeira turma do Projeto ‘Para Ler o Mundo’, em 2010: Maria da Silva, Armelinda dos Reis, Anita Marcolina de Brito, Maria Conceição dos Santos, Maria Dirce e Maria Elisa. | Foto: arquivo pessoal

Mas não é só pela flexibilidade do projeto que Lídia conquistou os alunos que passaram pelo curso durante todos esses anos. Seu comprometimento com o grupo vai muito além da capacidade de formar palavras ou frases. Lídia tem consciência das dificuldades enfrentadas por quem deseja aprender a ler e escrever depois de certa idade: “Continuo acompanhando histórias difíceis, problemas de família, idosos que convivem com netos ou sobrinhos usuários de drogas, cada um tem uma história”.

Lídia coleciona histórias emocionantes de ex-alunas. | Foto: Fernanda Botelho




Ela se orgulha por contribuir para satisfazer o desejo de quem se sente excluído por não dominar a leitura e a escrita: “Tenho uma aluna que é evangélica e queria ler a Bíblia. Aprendeu comigo, é emocionante”. Outro aluno, João, compartilhou com o grupo a felicidade de pegar um panfleto de supermercado e conseguir ler: “Macarrão! Feijão!” Há ainda outra aluna que foi para São Paulo e conseguiu ler os nomes das estações de metrô: “Ela não precisava mais perguntar para ninguém, morria de vergonha”. Em suas aulas, Lídia utiliza tudo que faz parte do cotidiano dos alunos, como receitas médicas e bulas de remédio, panfletos que ela recolhe em consultórios: “Tudo que acho interessante e bom pra mim, passo pra eles também. Falamos sobre plantas medicinais, ajudo a marcar consultas…”. Lídia segue à risca aquilo que o educador Rubem Alves escreveu: “Os educadores deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos”.

Com turma de alunos na EMEI Vinícius de Moraes. | Foto: arquivo pessoal

Vestida de Emília, do Sítio do Pica Pau Amarelo, durante a Feira do Folclore, em 1995, na praça Mello Peixoto. | Foto: Luiz Carlos Seixas

De sua vida como professora, Lídia guarda boas recordações e não esconde a satisfação que sente quando encontra ex-alunos pela cidade: “Fui professora do Caio – ela se refere ao empresário e vereador Caio Lima e do irmão dele, Carlos – do Emerson, que hoje é despachante, do Toninho da relojoaria. Eu ainda lembro dos cadernos deles, um capricho”. Ela lembra também da tristeza que sentiu quando há cerca de três anos acompanhou uma amiga em uma palestra no Centro de Reabilitação. Ao entrar na sala ela ouviu: “Oi professora!” Dentre os presos, alguns haviam sido seus alunos: “Choramos, foram nossos alunos. Nos esforçamos, mas não adiantou. Foi muito triste”.




Lídia se dedicou intensamente ao trabalho e carrega na memória muitas histórias de vida, como o caso de uma mãe que criava onze filhos e apareceu grávida novamente: “Eu fui professora dos onze filhos”. A mulher contou que o marido não deixava que ela tomasse pílula. A professora não pensou duas vezes e foi logo sugerindo que a mulher comprasse os comprimidos e os escondesse dentro do saco de arroz: “Perguntei se o marido mexia na cozinha, ela disse que não. Na hora que for pegar o arroz, a senhora toma um comprimido”. Lídia confessa que o cotidiano das escolas piorou muito. Muitos alunos, mesmo os menores, não aceitam a autoridade do professor: “Alguns xingam, fazem gestos obscenos. Falta disciplina”.

“Tenho uma aluna que é evangélica e queria ler a Bíblia. Aprendeu comigo, é emocionante”. (Lídia Benitez)

Apesar de todas as dificuldades, a professora Lídia Benitez se anima com aqueles que ainda desejam aprender. Sua experiência à frente do projeto Para ler o mundo comprova que não se trata apenas de ensinar um grupo de adultos a ler e escrever, mas de dar outro sentido à vida dos alunos.

Feliz Dia dos Professores | JornalBiz.com

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