Vila Odilon: o bairro das olarias

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Redação Jornal Biz

Se o barro não se entregar totalmente, o oleiro nada pode fazer. (A. W. Tozer)

Um olhar desatento pode sugerir que a vila Odilon seja apenas mais um bairro de Ourinhos. Porém, ao observar o cenário acima dos telhados das casas o que se revela é uma paisagem única da cidade: as inúmeras torres de tijolos que durante décadas liberaram a fumaça produzida nos fornos das olarias conferem identidade ao bairro e guardam histórias que só podem ser ouvidas por ali.

Hoje o bairro está completamente integrado à cidade e a dinâmica social que caracteriza a vida urbana não se diferencia de outras regiões de Ourinhos. Mas nem sempre foi assim. Durante muitos anos, a vila Odilon permaneceu como um território apartado do núcleo urbano mais central da cidade, mantendo uma distinção que lhe atribuía características próprias. O eixo que norteava a vida e o trabalho naquela região era a atividade desenvolvida pelas olarias no processamento da argila retirada das barrancas do rio Paranapanema.

Rua Rio de Janeiro em Ourinhos, anos 1950. Ao fundo, as chaminés das olarias da Vila Odilon.

A produção de objetos a partir do processamento da argila remonta aos primórdios da civilização. Vestígios de cerâmica contribuíram para entender as práticas cotidianas de povos do passado e suas diferentes utilizações. No livro Arte da Cerâmica no Brasil, o professor Pietro Maria Bardi define: “A denominação cerâmica abrange todos os objetos manufaturados ou industrializados tendo como matéria prima principal as argilas, o barro”.

Temperaturas nos fornos podem chegar a 940 graus.

A finalidade do processo, que inclui o cozimento das peças em fornos com alta temperatura, pode ser a produção de utensílios domésticos, obras artísticas, ou materiais utilizados em construções, como telhas e tijolos.




Tijolos, telhas, vasos, artesanato: tudo feito a partir da argila.

As primeiras olarias destinadas à fabricação de tijolos e telhas surgiram em Ourinhos logo após a criação do município em 1918. Em 1921, a família Pacheco Chaves construiu ali a primeira cerâmica, que depois foi vendida para o cafeicultor Caio Prado. Em seguida, a olaria passa para a família de João da Silva Nogueira, que havia chegado de Barra Bonita em 1928. É de Barra Bonita também que vieram outros descendentes de italianos, como os Fantinatti, os Carnevalle, os Pasquetta, e instalaram pequenas olarias naquela região, dando início ao que se tornaria a vila Odilon. Todos vinham atraídos pela excelência da matéria prima encontrada em abundância às margens do Paranapanema, nas proximidades de onde hoje está instalado o Clube Diacuí. Esse material, conhecido como arenito de Botucatu, era ideal para a fabricação de tijolos e telhas, apresentando colorações diferentes que, misturadas, forneciam a liga ideal para o manuseio.

A vida desses primeiros ceramistas foi bastante difícil. O trabalho pesado e insalubre, onde o trabalhador se expunha às altas temperaturas dos fornos exigia a participação de toda a família em um rude trabalho manual. A argila era retirada das margens do rio com pás, e carregada em carroças até as olarias. Para misturar e amassar o barro era usado o trabalho de um burro, que girava em torno de um eixo instalado em um barril onde o barro era depositado.

Alguns dos fornos da Olaria Orily, localizada no final da rua Padre Rui Cândido da Silva, na Vila Odilon.

A madeira utilizada nos fornos era retirada das matas que ainda eram abundantes àquela época, e na ausência de secadores, a produção diminuía em época de chuva e maior umidade. Era terrível, o cara saía de lá pingando, parecia que estava na chuva, conta Antônio Edvaldo Fantinatti, no filme “Oleiros”. Ele lembra ainda que todo o trabalho era feito sem luvas ou qualquer material de proteção ou segurança.

Cena comum em olarias, mulheres e homens dividem as mesmas tarefas.

O processo de queima exigia conhecimento e cuidados, e depois de prontas as mulheres levavam na cabeça as telhas que eram acomodadas em uma grade e levadas até o estoque. “Nós ficávamos limpando telha, tinha que tirar as rebarbas do lado, tinha que tirar com a faca, uma por uma.”, conta dona Paulina Cecília Nogueira. As pessoas mantinham hábitos da vida rural, plantando e criando galinhas e porcos para consumo da família. Os empregados das cerâmicas geralmente moravam em uma casa cedida pelo proprietário, no terreno onde a olaria estava instalada, o que gerava uma situação de estar permanentemente à disposição para o trabalho.




Se na própria região central da cidade a dinâmica urbana estava restrita ao núcleo em torno da estação ferroviária, com plantações de café a poucas quadras da Praça Mello Peixoto, um bairro distante como aquele ainda permaneceria um bom tempo com seu aspecto rural. No início dos anos 1930 começou a se desenhar o que viria a ser o bairro das cerâmicas, quando Odilon Chaves do Carmo começou a lotear a área de uma chácara de sua propriedade.




Depois de sua morte, aquela região passou a ser conhecida pelo seu nome, mas também como “a vila das chaminés”. O bairro, inicialmente formado por casas de madeira e ruas esburacadas, recebeu energia elétrica em 1943, o que trouxe transformações para as cerâmicas, que iniciaram gradativamente a instalação de maquinários para auxiliar na fabricação de telhas e tijolos.

15 chaminés em uma foto. Em pleno 2018, lembranças daquela que já foi uma das mais prósperas atividades econômicas da cidade.

Se na vila Margarida fixaram-se os ferroviários, os moradores da vila Odilon eram os trabalhadores das olarias. Com as dificuldades de locomoção daquela época e a distância do centro da cidade, a vila ganhou autonomia com pequeno comércio e atividades de lazer. Como acontecia na Praça Mello Peixoto, os moradores do bairro também frequentavam a praça logo depois da missa, e eram concorridas as quermesses e festas de igreja. Os times de futebol animavam as tardes de domingo, e assim os oleiros recuperavam energia para o duro trabalho da semana.

Cerâmica Ferrazoli | Em pé: professor Norival, Humberto, Izaias, Pedro Dadona, Irineu, Otavico, Tuta, Nelson Saraiva, Antoninho e Manivela. Agachados: Roxinho, Neno, Ivo, Papica e Nunes.




Cerâmica Ourinhense, década de 1950. Em pé: Flávio, Toninho, Angelo Novelo, Osvaldo Biglioni, Osvaldo Fernandes e Eurico. Agachados: Paraguaio, Zezão, Mingo, Alberto Arantes (Chinelão) e Abner (Sabá).
Esporte Clube Vila Odilon, década de 1960. Em pé: Gilberto (Ponte Preta), Roberto Peixe, Odilon, Papica, Marcão, Nelson Catarino e Antônio. Agachados: Gato Molhado, Joanico, João Mazini, Celso Cruz (Cascavel) e Horácio Amaral Diniz.

As olarias significavam setor importante da atividade industrial em Ourinhos. Um relatório de 1958, endereçado ao Departamento de Ordem Política e Social, o DEOPS de São Paulo, o delegado Roberto Cardozo de Mello Tucunduva transcreveu um inventário das indústrias instaladas na cidade naquele ano. Conforme o documento, Ourinhos possuía 67 indústrias que empregavam ao todo 1.025 operários. Desse total, 35 se dedicavam a produção ceramista, com um total de 254 operários. A maior parte das indústrias que processavam a argila, cerca de 45,7%, possuíam até 5 operários. A Cerâmica A. J. Souza, a maior de Ourinhos naquele momento, possuía 24 operários.

Publicidade da Cerâmica Sanches no jornal Diário da Sorocabana, 3 de março de 1968.
Publicidade da Cerâmica São Joaquim, a primeira mecanizada de Ourinhos, no jornal O Progresso de Ourinhos, 28 de maio de 1972. A Avenida Paranapanema é a atual rua Padre Rui Cândido da Silva.

A partir dos anos 1970, com a mecanização do processo de fabricação, a produção ourinhense se revelou. As telhas e tijolos eram levados de trem para Londrina ou para o Mato Grosso, e muitas vezes os vagões traziam madeira paranaense que eram usadas para a construção de casas na cidade. O conhecimento dos antigos oleiros foi sendo substituído pelas máquinas, e o sucesso no empreendimento fez com que, nos anos 1990, a cidade contabilizasse 98 cerâmicas em atividade, o que motivou a criação da  Associação das Cerâmicas Vermelhas de Ourinhos. A cidade ficou conhecida pela produção e qualidade do material fabricado, que chegou a ser o terceiro setor em arrecadação de tributos municipais.

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Porém, alguns fatores contribuíram para o declínio da atividade da indústria ceramista, que trouxe vida e identidade à vila Odilon, além de empregar milhares de pessoas.  A matéria prima, retirada das margens do Paranapanema durante décadas, começou a dar sinal de esgotamento. Além disso, o fechamento das comportas das hidrelétricas Canoas 1 e 2, e Cambará, fez com que as jazidas de argila ficassem submersas.

Na Vila Odilon, vários barracões estão abandonados.

O custo para a produção aumentou muito com a compra de barro em local distante da cidade e com a alta no preço da madeira usada nos fornos.  A crise fez com que a maioria das indústrias cerâmicas, que viviam dificuldades em manter o sistema familiar nos negócios, fechasse as portas. Hoje existem menos de 20 indústrias em atividade na cidade.

Dos tempos de fartura da produção ceramista na vila Odilon restam as chaminés e as histórias contadas pelos moradores. O lugar se modificou completamente, e a paisagem foi transformada pela expansão imobiliária e comercial. Embora ainda exista uma produção considerável de telhas e tijolos no bairro, muitas das antigas olarias não passam hoje de vestígios da antiga “Vila das Chaminés”.

Para produzir esse texto a equipe do Jornal Biz pesquisou em: “Arte da Cerâmica no Brasil” (1980), de Pietro Maria Bardi; “As inovações tecnológicas e o ocaso dos oleiros – A mecanização das olarias em Ourinhos – 1950-1990” (dissertação de mestrado), de Roberto Carlos Massei; “Oleiros”, documentário dirigido por José Luiz Martins; além dos sites: https://www.folhadelondrina.com.br/cidades/ceramistas-fazem-estoque-de-argila-110463.html,  http://www.debatenews.com.br/2005/07/03/olarias-apogeu-e-queda-de-um-imperio-em-ourinhos/ e https://ourinhos.blogspot.com/.

Imagens: Acervo Carlos Lopes Bahia, Casinha da Memória, Wilson Monteiro e Bernardo Fellipe Seixas.

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