AMARCORD

por Antonio Romane

Tantas as memórias do Cine Ourinhos que me perco num labirinto de imagens e pessoas desde minha mais tenra idade. Explico: não me lembro da primeira vez que vi um filme, pois minha mãe, Marina, me levava ao cinema desde bem antes que eu tivesse cinco anos de idade. Certamente veio dela essa minha paixão, bem como pela leitura.

Lembro-me, desse tempo, de uma cena em que alguns tipos de chapéu (bandidos!) enfiavam umas pessoas, sob a mira de revolveres, nuns tambores. Os tambores eram vedados a marteladas. Depois, eram levados por um caminhão e rolados para a água (rio? lago? mar?).

Não me lembro de ter ficado assustado com a violência — porque devo ter percebido que era violência, tanto que as imagens ficaram gravadas em minha mente. E eu sabia o que era um revólver. Não me lembro de nenhuma outra cena daquele filme. Teria eu dormido no colo de minha mãe?

Tenho uma lembrança especial do Pinóquio de Disney: o lobo come a maçã do boneco, e come com tanto prazer que a cada mordida escorre suco da fruta… Eu passava em frente a uma quitanda de japoneses, via aquelas maçãs argentinas vermelhas a me sorrir — mas cadê dinheiro pra comprar uma? Demorei para perceber que aquela maçã sumarenta era impossível.

___continua___

         Não me lembro dos filmes que vi acompanhado dos meus tios Amália e Geraldo, nas noites de domingo, mas ainda sinto o perfume da dama da noite que se espraiava no alto do muro da casa de esquina do armazém dos Zanotto, na praça Mello Peixoto. Então meus tios paravam na esquina da rua São Paulo onde havia uma casa de sucos. Ô delícia![1]

Era sempre aos domingos, e eu distinguia vesperal e matinê. Lembro-me da troca de gibis (eu preferia os “desenhos”) na porta do cinema, só podíamos entrar com três nas mãos, mas escondíamos alguns por baixo da camisa – se o gordo Tufi pegasse, adeus Pinduca e Bolinha. O que fazia o Tufi além de colecionar tanto gibi tomado? O filme não importava muito, mais importante era a sequência do seriado: será que o mocinho vai salvar a mocinha? Ah, eu adorava o Gordo e o Magro. Aliás, continuo adorando. E tinha também Oscarito e Grande Otelo.

Angústias da adolescência eu também as enfrentava, sozinho, no Cine Ourinhos. Os filmes? Boh.

A paixão juvenil pela moça em seu vestido lilás de tafetá e seus cabelos meio presos, meio soltos, às vezes com uma tiara. Logo, logo eu descobriria que era alérgico a laquê. Eu, que não gostava daqueles filmes açucarados de Hollywood (nessa categoria entram Ben Hur e Os Dez Mandamentos), mas, sabe como é, o que não se fazia por um sorriso da moçoila?[2] E era ainda aporrinhação do Tiro de Guerra.

Então vieram os filmes japoneses nas sessões das terças-feiras. Eu as frequentava assiduamente, ali eu descobri o Kurosawa de Viver. E começou uma época dourada no Cine Ourinhos: vi filmes do Cinema Novo, grandes comédias italianas, o admirável Jerry Lewis. A euforia com os amigos quando saíamos de uma sessão em que tínhamos visto algum filme tão aguardado (nós estávamos informados porque líamos os jornais paulistanos), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Yellow Submarine,Macunaíma, Um Estranho no Ninho, O Padre e a Moça, Todas as Mulheres do Mundo, Um Gosto de Mel, O Bandido da Luz Vermelha… E bobagens agradáveis como 007, os filmes de terror com Vincent Price, os western spaghetti. Alguns comentados nalguma mesa do Jaracatiá, o Laercio, o Roque, o Surumba, o Zé Rodrigues, o Zé Rubens, o Sergio Nunes, o Bortolato, o Waldir, o Hugo, o Cícero, o Baé, o Sidney, o Dirceu…

Depois foi o Cine Pedutti, enquanto o Cine Ourinhos entrava em decadência. Mas isso foi por pouco tempo. A cidade começou a me pesar demais, a solidão, a tristeza que me impedia de ser feliz. Então vim-me embora pra São Paulo. Para descobrir que ser feliz é impossível, mas estar feliz sempre que possível.

Antonio Romane

Antonio Romane nasceu em Bandeirantes, Paraná, em 1947, e veio bem criança com a família para Ourinhos. Jornalista, étambém poeta. Publicou Alenterra, talvez o primeiro livro impresso em Ourinhos, 1977; Certas pessoas e outra gente, 1980; Espelho absoluto, 1992, e Hierofanias, 1994. Poesia para crianças: Coleção de slides, 1987, e Noite transfigurada, 2004. Álbum colagem: Um começo para Catrina & Aristeu, 2002. Participou ainda de várias antologias e traduziu, entre outros, Jacques Derrida. Tem no prelo Extranhas.

Foi editor de O escritor, jornal da União Brasileira de Escritores, das revistas Pau Brasil e Bio, pioneiras nas questões ambientais, e do jornal partidárioVoz da Unidade.

[1] Escarafunchando a memória, surgiu a sequência de um filme colorido cheio de corre-corre de gente que se vestia esquisito, e um sujeito, usando um pedaço circular de vidro que, recebendo os raios do sol, incendiava uma folha de papel. Porca miseria!,coisa misteriosa.

[2] Lembro-de claramente do tema de abertura das cortinas do Cine Ourinhos, até fiz um filmete:

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