Cadê meu óculos?

Usar óculos  é um sacrifício. Fico com pena quando vejo uma criança com aros equilibrando no nariz. Além de ficar com cara de intelectual ou de filhinho da mamãe, o uso de óculos limita algumas brincadeiras. Jogar queimada é um risco e suar provoca um embaçamento nas lentes, parecendo que as nuvens baixaram à terra.  

Nos adultos também incomodam: marcam o nariz, e se a gente transpira eles escorregam. Cozinhar sem óculos não dá, mas com eles também é uma lástima porque precisam a todo o momento de uma limpeza. Pior quando as lentes  apresentam um risquinho, e os olhos ficam fazendo ginástica para aquilo não atrapalhar.

Eu não sabia desses transtornos, e me senti muito importante quando comecei a usá-los, bem menina ainda. Porém, apesar dos muitos anos de recomendação de uso, vivo fugindo deles. Ficam a maior parte do tempo pendurados na roupa, prontos para serem usados em casos de emergência. Ou bem abrigados na caixinha, dentro da bolsa. Ou então no alto da cabeça, esquecidos. E eu ali, olhos apertados de míope, não atentando que seria só colocar o tal objeto para ver o mundo melhor.

As dificuldades com os óculos começam com a palavra, que tem um s no final, mas designa um só objeto: “Onde está meu óculos” ou “Onde estão meus óculos?” O correto é tudo no plural, mas o problema é que os meus não estão  comigo! (Mas sei onde estão:  a 200 km daqui – esqueci numa viagem de fim de semana – e apesar do plural, só tenho um).

Não adiantaram as tentativas: parece que as letrinhas  hoje em dia diminuíram e andam meio desfocadas, inútil teimar ler alguma coisa sem eles. Lembrei de um óculos antigo, guardadinho numa gaveta. Que ótima idéia, resolvida a situação!

Ledo engano – meus  óculos velho tem um grave inconveniente. Com certeza  não é mais adequado aos meus olhos, porque  só posso usá-los se não me movimentar. Enquanto estava  quietinha lendo o jornal,  enxergando malemáas palavras, tudo bem. Mas foi só levantar do sofá que o tormento começou: tudo anda junto comigo! Os quadros na parede parecem me acompanhar e os desenhos no piso cerâmico também. Socorro, estou sendo perseguida por uns quadradinhos do chão – os objetos da minha casa agora têm vida própria! Um movimento abrupto olhando para cima e para baixo  é o suficiente para que o mundo vire de ponta cabeça.  Céus, me imaginei uma astronauta levitando, sem referência de chão.

Felizmente foi só tirar o danado que as coisas voltaram ao normal. Percebi quase frustrada que nem um dos quadros queria me seguir, continuavam todos imóveis e pendurados, como tem de ser.

Vão me perguntar como posso estar aqui agora, contando essa história escrevendo no computador. É uma das vantagens de se tocar piano – a digitação fica automática, nem  olho o teclado. Mas no monitor preciso olhar, e aí é um sacrifício sim – tem hora que tudo fica misturado, os ss e rr se embaralham me enganando.

Mas descobri uma vantagem nesses dias míopes, olhando para o céu de abril, que está muito lindo. E imagino que poucos podem se dar ao luxo de confessar o que vou dizer agora: vi duas luas! Bingo! Estavam sobrepostas, meio encobertas por uma nuvem – e eram duas, juro. Quase me considerei uma mulher de sorte por ficar sem óculos por uns dias.

Neusa Fleury é professora, escritora e gestora cultural. Regeu diversos grupos corais e foi Secretária de Cultura por vários anos em Ourinhos e região.

Publicada originalmente no Jornal Novo Negocião

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