Pesquisa histórica revela Ourinhos através da alimentação

Nos últimos dias, a alta no preço dos alimentos tem ocupado um espaço significativo nos noticiários e provocado discussões acaloradas nas redes sociais. Não há dúvida de que comer é um dos atos mais prazerosos do ser humano. Comemos para manter a vida, mas também para celebrar com a família e com os amigos. A comida e tudo que envolve sua preparação estão cada vez mais presentes nos programas de televisão e na internet existem inúmeros sites que se dedicam à culinária. Porém, o que muita gente ainda não sabe é que a alimentação também pode explicar muitas coisas sobre a nossa história, e a forma como a sociedade se organiza.

Anúncio publicitário de moinho de fubá, jornal A Voz do Povo de 21 janeiro de 1934.

Uma pesquisa realizada pelo professor Rogério Augusto Singolani desvendou parte da história ourinhense a partir de dados relacionados aos hábitos e práticas alimentares da cidade. Rogério é professor da rede pública do estado de São Paulo há mais de vinte anos, e desenvolveu sua pesquisa no programa de Pós-graduação em Ensino de História/mestrado da Universidade Estadual de Maringá. Toda pesquisa foi realizada a partir da consulta de fontes locais, como jornais, caderno de receita e livros publicados por memorialistas da cidade.

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Além da dissertação final, “A História tem sabor! Ensino de História, Memória e Cultura Alimentar em Ourinhos, SP (1927-1977)”, o trabalho inclui também um kit didático que busca aproximar os estudantes da construção de uma pesquisa histórica em sala de aula a partir de atividades que utilizam fontes locais. Foi a partir destas fontes históricas que produzimos um material didático destinado ao exercício no método histórico na educação básica tendo a alimentação como tema”, explica Rogério.

Imagem da capa de um dos “cardápios” que compõe o kit “O sabor da História: práticas alimentares em Ourinhos – (1927-1977) ”, material didático produzido a partir da pesquisa.

Leia abaixo a entrevista realizada com o professor Rogério Singolani, onde ele esclarece algumas questões sobre a pesquisa realizada, a importância da disponibilidade de fontes locais para o estudo da história e a possibilidade de compreensão de uma sociedade a partir da alimentação. Confira:

Jornal Biz: Como surgiu seu interesse pelo tema da alimentação?

Meu interesse pela História da Alimentação pode ser explicado pelo fato do tema envolver questões imediatas, como o cotidiano da sociedade e ao mesmo tempo ser produto da cultura, ou seja, resultado de práticas, do contato entre povos, da transmissão de conhecimentos. A História é uma ciência que permite analisar a experiência humana sobre diversos pontos de vista, como o político, o econômico, o social e o cultural. O historiador Fernand Braudel inaugurou na década de 1960, nas páginas da revista Annales E. S. C, os estudos históricos relacionados ao cotidiano a partir de três objetos: alimentação, vestuário e moradia. É claro que também gosto de cozinhar e acredito que comer é um dos prazeres essenciais do ser humano.

O professor mestre Rogério Singolani, autor da pesquisa.

Jornal Biz: Qual a importância de trabalhar com fontes locais na sala de aula?

 Na maioria das vezes, os livros didáticos de História reproduzem uma narrativa pronta e distante, tanto do ponto de vista temporal como espacial. Dessa forma, os estudantes tem a impressão de que a História nada mais é do que uma sequência de eventos cujas causas, consequências e personagens devem ser memorizados e descritos quando necessário. Quando se propõe o trabalho com fontes históricas em sala de aula pretende-se que os estudantes experimentem o processo de construção da narrativa histórica, ou seja, que analisem a fonte observando como, quando, porque e qual a intenção de sua produção.

Maria Lucia Cury, proprietária do Caderno de Receitas, com as filhas. | Foto: redes sociais

Jornal Biz: Fale um pouco sobre as fontes utilizadas na sua pesquisa.

Um dos desafios para produzir pesquisa histórica a partir da História local é justamente localizar as fontes. Fora dos centros de pesquisa ou de órgãos estatais como os arquivos públicos, as fontes históricas geralmente estão dispersas ou em arquivos privados nem sempre disponíveis. No caso da pesquisa sobre a alimentação em Ourinhos foi fundamental a existência do site http://www.tertuliana.com.br/docs mantido pela Associação de Amigos da Biblioteca Pública – AABiP. O recorte temporal da pesquisa, entre 1927 e 1977, foi estabelecido a partir do acervo de jornais disponíveis no site da instituição. Deste acervo utilizamos os jornais A Voz do Povo (1927-1949), Diário da Sorocabana (1958-1974) e O Progresso de Ourinhos (1965-1977). A maioria das referências sobre a alimentação, cerca de 78%, é composta por anúncios publicitários com indícios sobre o que era produzido, comercializado e consumido em termos de alimentação. Nos jornais Diário da Sorocabana (1958-1974) e O Progresso de Ourinhos (1965-1977) encontramos também seções dedicadas ao público feminino que publicavam receitas, que serviram de indícios para compor o processo de transformação da cozinha ourinhense em parte dos setenta anos aos quais a pesquisa faz referência. Para investigar a comida de rua e o ambiente sociocultural ligado ao consumo de comida em Ourinhos utilizamos duas obras memorialísticas, o clássico de Jefferson Del Rios, Ourinhos: memórias de uma cidade paulista, publicado em 1992 e a obra Ourinhos em crônicas, de Norival Vieira da Silva, publicada em 2009. No decorrer da pesquisa contamos com a generosidade de Maria Lúcia Nicolosi Cury, que disponibilizou um de seus cadernos de receitas compilado na década de 1940, que serviu de referência para compor o aspecto privado ligado a alimentação de Ourinhos. Foi a partir destas fontes históricas que produzimos um material didático destinado ao exercício no método histórico na educação básica tendo a alimentação como tema.

Cardápio de Jaracatiá Lanches publicado no jornal O Progresso de Ourinhos de 26 janeiro de 1969.

Jornal Biz: De que forma a alimentação contribui para o entendimento de uma determinada sociedade?

A alimentação é uma prática vital para os seres humanos e acompanha sua experiência do nascimento até a morte. Ocorre que é produto da cultura de cada sociedade, pois compreende a seleção e cultivo/criação dos produtos, sua transformação em comida a partir da utilização de processo desenvolvido para esta finalidade e a refeição propriamente dita com o estabelecimento de horários e ritos que determinam, por exemplo, o que é uma comida festiva de outra ordinária ou cotidiana. Temos então os pratos regionais ou nacionais como acarajé e o quibe, que demarcam o trânsito de populações em dois momentos distintos da História do Brasil, o primeiro relacionado à diáspora africana com a presença do dendê na culinária baiana, mais especificamente de Salvador e o segundo, em um contexto local, relaciona-se à presença de imigrantes libaneses em Ourinhos. Vale lembrar também como a alimentação, especificamente o comportamento e hábitos à mesa, são recorrentes em um tipo de ficção bastante característico da sociedade brasileira, como as novelas. Perceba a frequência das situações à mesa como pano de fundo para os diálogos.

Anúncio publicitário da Cantina Italiana publicado no jornal O Progresso de Ourinhos de 07 de janeiro de 1971.

Jornal Biz: Você pode identificar um prato típico ourinhense no período pesquisado?

Quando se pensa no prato típico de um lugar ou grupo social deve-se levar em consideração que esta comida é festiva, ou seja, servida em ocasiões especiais e muitas vezes explorada do ponto de vista comercial e turístico. Em outras palavras, é um ritual de celebração tanto no preparo como no consumo. Tendo como referência esta definição de prato típico, embora possa soar estranho e demasiado corriqueiro, é possível dizer com base na pesquisa que, na década de 1970 o churrasco foi o prato típico dos ourinhenses, dada a quantidade de restaurantes que serviam a carne assada e que anunciavam a iguaria nos jornais do período. Para ilustrar esta afirmação podemos observar o caso de um estabelecimento de venda de comida tradicional do período, a Cantina Italiana que, embora anunciasse no jornal O Progresso de Ourinhos de 7 de janeiro de 1971, sua especialidade em “cozinha típica italiana”, oferecia também “completo serviço de churrascaria”. Uma informação bastante curiosa sobre o prato típico de Ourinhos que pudemos observar na pesquisa que realizamos foi o “Bife a Ourinhos”, publicado em um cardápio do Jaracatiá Lanches no jornal O Progresso de Ourinhos de 26 de janeiro de 1969. Embora não seja descrito no anúncio quais os ingredientes e acompanhamentos do prato, a julgar pelo preço de NCr$ 5,00 (Cinco cruzeiros novos), trata-se de um prato especial pois estava entre os mais caros do cardápio, atrás somente do “Camarão grelhado” e do “Bife a Strogonoff”, ambos custando NCr$ 6,00 (Seis cruzeiros novos). Se por meio das fontes pesquisadas não foi possível identificar um prato singular de Ourinhos deve-se levar em consideração as características da própria formação da cidade ligada ao trânsito de pessoas que utilizavam as ferrovias, Sorocaba e São Paulo-Paraná, que se interligavam aqui e que conferiram a Ourinhos o caráter de local de passagem e de permanência temporária, além da presença de muitos grupos distintos de imigrantes e de migrantes.

Página do Caderno de Receitas de Maria Lúcia Nicolosi Cury, década de 1940.

Jornal Biz: Qual o ingrediente mais utilizado na alimentação no período estudado?

Por meio da pesquisa que realizamos não foi possível estabelecer os ingredientes mais utilizados no preparo de comida em Ourinhos. Contudo é possível observar a transformação desses ingredientes. Dois exemplos podem ilustrar esta afirmação, na década de 1930, nas páginas do jornal A Voz do Povo, havia anúncios de moinhos de fubá que ofereciam seus produtos/serviços através do jornal. Outro exemplo interessante é o caso da banha de porco, que reinou absoluta como gordura na preparação de comida durante parte do século XX e cuja produção e venda era anunciada nas páginas do mesmo jornal A Voz do Povo, na década de 1940. Ainda sobre os ingredientes utilizados na alimentação é necessário lembrar que Ourinhos possuiu uma base industrial da Sanbra – Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro, instalada na década de 1940, que produzia óleo vegetal de algodão utilizado na alimentação, sinalizando o processo de substituição da banha suína na preparação de comida.

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Jornal Biz: A alimentação ourinhense passou por muitas mudanças nas últimas décadas?

Como a pesquisa compreende um período relativamente longo, setenta anos compreendidos entre 1927 e 1977, é possível observar várias transformações nas práticas alimentares de Ourinhos como questões relacionadas ao abastecimento como o surgimento das feiras livres, as ordenações de higiene e adequação espacial como a oferta de carne, a diversificação e a especialização do oferecimento de comida nos restaurantes, a proliferação das churrascarias, o aparecimento das lanchonetes, todos possíveis de se observar por meio dos anúncios publicitários, o aparecimento da propaganda de produtos alimentícios industrializados como meio de gerar necessidade a partir do desejo, a transformação no comércio de alimentos com o surgimento dos primeiros supermercados e a transformação das técnicas e equipamentos culinários a partir dos ingredientes e preparos prescritos nas receitas compiladas e ou publicadas.

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