Oto das pipocas coloridas

As bochechas do músico inchavam e murchavam ao som da tuba. Oto não tirava os olhos delas, e o imitava enchendo a boca de ar e fazendo ruído obsceno.  O pai observava divertido. As noites de domingo eram de passeio ao jardim, como era conhecida a praça central da cidade, para assistir a apresentação da banda municipal. No meio do caminho, entre a casa e a praça, havia a linha do trem, os trilhos onde o menino observava curioso os vagões cheios de passageiros, que passavam sempre devagar por ali. O peso daquela máquina gigante fazia tremer o chão sob seus pés, e ele acenava para os desconhecidos que surgiam nas pequenas janelinhas.

Poucos minutos separavam a casa de Oto do centro da cidade. As pessoas se aglomeravam na praça, sentadas nos bancos ou observando dois grandes viveiros com aves, instalados atrás do coreto onde os músicos faziam a retreta dominical. Alguns casais de namorados aproveitavam para admirar as vitrines das lojas ao redor da praça. Oto se encantava com o chafariz que lançava jatos de água iluminados por luzes coloridas. O efeito provocado pelas cores e pelo barulho da água que subia e voltava a cair no tanque se completava com o movimento dos peixes de tom alaranjado que nadavam alucinados atrás das migalhas de pão ou pipocas lançadas pelas crianças.

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Assim que o cheiro das pipocas se espalhava pela praça, as pessoas já começavam a se juntar em torno dos carrinhos que exibiam aqueles pequenos montes ainda quentes. Depois de encher bem os saquinhos, era lançada mais uma porção de sal sobre as pipocas. Oto gostava do gosto do molho de pimenta muito azedo que se misturava com o sal e deixava as primeiras pipocas do saquinho meio amolecidas. As mãos lambuzadas eram lavadas no bebedouro, onde também se matava a sede que surgia inevitável.

Chegava a hora da apresentação e os três se posicionavam na frente do coreto para observar os músicos que vestiam paletós e gravatas, além do vistoso quepe. Eles sempre usavam aquele uniforme, inclusive quando abriam o desfile de sete de setembro que acontecia na avenida que passava ao lado da praça. Ali a banda parava e seus integrantes se voltavam para o palanque onde ficavam as autoridades da cidade. Oto achava que aquelas pessoas deviam ser importantes, já que a banda parava tocando só para elas. Mas nas noites de domingo a banda é que ficava lá no alto, no coreto, que era sempre mais bonito que os palanques das autoridades.

Só no final da apresentação, quando já não havia mais nada para fazer ou assistir, Oto se queixava de cansaço. Enquanto os músicos guardavam seus instrumentos, a praça se esvaziava aos poucos. O barulho das águas do chafariz cessava e as luzes coloridas eram apagadas. Enquanto retornava para casa com seus pais, Oto pensava na banda, nos peixes alaranjados e no cheiro da pipoca. Ele ainda estava com sede.

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Talvez a música que estava ouvindo no carro provocasse essas lembranças, pensou enquanto estacionava o carro em frente à fábrica de pipocas coloridas. Desceu e levantou a porta de ferro, que até o mês passado todas as manhãs era aberta por algum dos funcionários que teve que demitir. O silêncio era o novo ingrediente naquele ambiente. Como estariam se virando os antigos empregados em meio à crise provocada pelo vírus? Sabia das dificuldades que enfrentariam, não maiores do que a que ele próprio estava vivendo, com dezenas de boletos empilhados na escrivaninha. O dono do prédio disse que daria algum desconto no valor do aluguel, mas mesmo assim seria impossível cumprir os compromissos. Pegou um envelope com correspondência bancária. Estava lá: Otoniel de Oliveira Castro, ele mesmo, com uma dívida que se avolumava com juros exorbitantes. Preferia que o chamassem de Oto, não gostava do nome estampado no envelope.

A cada dia que passava, os cheiros iam desaparecendo do ambiente. Com a fábrica em funcionamento, a pipoca, os corantes e as essências deixavam aroma adocicado que se desprendia para fora do prédio, enjoando os vizinhos e atraindo as crianças. Como o burburinho dos trabalhadores, iam desaparecendo os perfumes e Oto ouvia ao longe o seu Antônio, funcionário antigo, perturbando a Sonia recepcionista que chegou aquele dia com o cabelo pintado de loiro. Hoje tem, hem dona Sonia? Namorado novo? Um menino interrompeu seus pensamentos, chamando seu Oto, seu Oto, tem sobra hoje? Olhou com tristeza os pés descalços do garoto, e fez um gesto girando as mãos com as palmas para cima, como se dissesse não sei o que fazer.  Ia toda manhã para o trabalho que não existia mais. Almoçava ao meio dia, e voltava à tarde. Ultimamente tirava um cochilo sem sossego no sofá da recepção, tentando achar uma saída para aquela situação.

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“Eu enviarei entre eles a espada, a fome e a peste!” A voz alucinada de Samuel era o único som que tirava Oto daquela letargia. Aquele homem se acomodara no canto da calçada ao lado da fábrica pouco depois da paralisação das atividades. Ficava ali, deitado próximo aos dois botijões de gás que alimentavam as máquinas, gritando sem parar versículos da bíblia ou xingando as pessoas que passavam pela calçada. “Raça de víboras!” Além do corpo magro e sujo, Samuel contava apenas com um cobertor fedorento e um pote de sorvete sem tampa, usado para se alimentar com aquilo que conseguia na vizinhança. Apesar da boca desdentada, da barba e dos cabelos longos, Oto percebia que Samuel não era muito mais velho que ele. O dono da Pipocaria, a fábrica que fornecia pipocas coloridas para os pequenos mercados da região, tentava imaginar quem seria aquela pessoa condenada ao abandono, cuja imagem lhe causava pena e nojo ao mesmo tempo. Depois que Samuel se instalou por ali, o aroma adocicado que reinava no local deu lugar ao cheiro ácido de urina que fazia as pessoas se desviarem um pouco quando passavam pela esquina.

Sentado na poltrona do minúsculo escritório da fábrica, Oto observava pelo celular as fotos da ex-esposa, de quem havia se separado há pouco mais de um ano. Ela parecia bem, morava agora com o dono de um restaurante e não se falavam mais. Ele próprio tinha se relacionado com outras pessoas, mas sua atenção se voltou totalmente para o trabalho. Antes da pandemia ele já sentia os efeitos da crise, mas com a chegada do vírus e o confinamento as dívidas se multiplicaram. Os mercados se esvaziaram e os aniversários de crianças deixaram de acontecer. As pipocas coloridas faziam sucesso entre a criançada. “Consumidos serão de fome, comidos pela febre ardente e de peste amarga!”. Oto pensou que talvez Samuel tivesse sido um pastor, um seminarista. Ele próprio não frequentava igrejas havia um bom tempo, embora fizesse questão de manter um pequeno crucifixo na parede do escritório. Trouxe de casa um cobertor novo e um sabonete para Samuel. O louco disse que não precisava de nada, mas ficou com o cobertor. Oto perguntou se ele sabia sobre o vírus. Samuel vociferou coisas ininteligíveis, mas Oto compreendeu quando disse que “foi fabricado na China”, e que “Para Deus esse vírus não existe, é coisa de político”.

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Oto acompanhava ansioso o aumento no número de casos de contaminados na cidade. Sentia-se impotente, à mercê da doença, dos cobradores, dos banqueiros, da felicidade da ex-mulher, da sujeira que teimava em se acumular em sua casa e no prédio agora abandonado da fábrica, do louco que falava sem parar, da sua inércia. Estava escurecendo, a manhã prometia chuva. Ao lado da escrivaninha no escritório, amontoavam-se caixas cheias de saquinhos de pipoca. Levantou, pegou alguns. Afastou os papéis da mesa e ali esvaziou as embalagens cheias de pipocas coloridas e brilhantes. Ficou olhando, absorto, por algum tempo. Resolveu reuni-las por cores. Montinhos de vermelhas, de azuis, verdes e amarelas. Decidiu que as vermelhas seriam colocadas uma abaixo da outra, formando linhas verticais. Com as azuis formaria um círculo cheinho feito um novelo de lã. Faltavam as verdes e as amarelas. Se conseguisse um empréstimo com juros razoáveis poderia recomeçar. Quem sabe até uma namorada, uma nova casa.  O telefone da empresa voltaria a tocar o dia todo, os funcionários correriam para atender aos pedidos, as contas sairiam do vermelho. Com as verdes, poderia desenhar uma árvore, e as amarelas seriam as flores, feito as da sibipiruna. Sentiu vontade de chorar, as cores das pipocas, das árvores, das flores, do chapéu do mendigo sentado na esquina, das paredes descascadas à sua frente, o vírus avançando, sua dor de cabeça. Ouviu um trovão e emitiu um grunhido de dor. Sua natureza estava convulsa, como a que fazia o vento uivar lá fora levantando poeira, folhas e os trapos do Samuel, que corria segurando o chapéu, com o cobertor às costas. Fora daqui, Samuel. Suma. Vá para o coreto, lá não chove.

O mendigo se afastou, Oto voltou para dentro fechando as portas que batiam com o vento. O prazer de ouvir as pipocas estourando, sentir os cheiros, ver as máquinas empacotando e as caixas se enchendo novamente. Resolveu acionar o maquinário, inútil há meses. Preparou tudo com o esmero que sempre exigiu para que seu produto fosse considerado de boa qualidade. Mediu os corantes, o açúcar, as essências, pesou os grãos, apertou os botões. Outro trovão estremeceu os vitrôs. O músico enchia as bochechas de ar, será que tocar tuba cansa?

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Em poucos minutos tudo parecia ter voltado ao normal. Quem sabe aquilo fosse um sonho, e agora acordado ele daria as instruções aos funcionários. Sônia, ligue para os clientes. Antônio, deixe a Sônia em paz. O cheiro doce na vizinhança, as luzes coloridas do chafariz da praça, a água que sobe. A tuba, o som da tuba no coreto onde está Samuel. E os peixes alaranjados? Oto escuta a chuva caindo no telhado da fábrica. As primeiras pipocas surgem, coloridas como aquelas luzes da infância. Antônio, temos que fazer as entregas. Antônio! Sônia! A chuva continua caindo e os músicos tocam mais uma música. O cheiro adocicado das pipocas. As mangueiras trazem o gás que sai dos botijões e Samuel já não dorme mais lá. Será que o louco está se protegendo da chuva? E já não há mais o chafariz com suas luzes, nem peixes, nem banda. Apenas o cheiro forte que exala das mangueiras, confundindo e envenenando Oto. As crianças, elas adoram as pipocas coloridas. O velho coreto sacode com o estrondo. Enrolado no cobertor novo, Samuel assiste maravilhado a chuva de cores que despenca do céu e se espalha por toda a praça.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

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