Foi numa manhã chuvosa que Jecy Vivan nos recebeu na casa onde mora há mais de 60 anos. Logo na entrada, uma orquídea com flores amarelas dava graça ao pequeno jardim. Nas mãos ela trazia um caderno com trechos de uma letra de música: “Cantarolar, repetir a letra da música várias vezes, escrever as partes mais difíceis de memorizar, é assim que eu decoro”. Ela frequenta o Coral da Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI) desde 2006, quando teve início o projeto realizado pelas Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO.
Aos 89 anos, Jecy conserva o prazer pela vida e pelo trabalho: “De manhã ajeito coisas em casa, cuido da cachorrinha, lavo a louça do café e vou trabalhar”. Ela confessa que é muito conversadeira e não gosta de ficar sozinha, justificando a intensa agenda que mantém no seu dia a dia. “Gosto de ver gente, de conversar. Por isso gosto do comércio, falo com todo mundo, brinco, dou risada o dia todo, acho que faz bem pra saúde”, afirma.
Os dados confirmam que Jecy tem razão. Em 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou um estudo que contabilizou 4,5 milhões de idosos empregados. De acordo com Carlos André Freitas dos Santos, médico geriatra da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), a função cotidiana melhora o engajamento e a autoestima, que são essenciais para o envelhecimento saudável e ativo. “O idoso que trabalha tem um gasto energético maior, quando comparado com idosos que não trabalham. Isto está relacionado ao fato do trabalho normalmente estar ligado a deslocamentos que tiram o idoso do sedentarismo“, afirma o médico.
Nascida em São Pedro do Turvo em 1928, Jecy deu um “olé” no destino que condenava as mulheres da época a uma vida limitada ao trabalho de dona de casa. Herdou do pai o dom para o comércio e não se intimidou quando ficou viúva aos 39 anos, com quatro filhos pequenos. Autodidata, Joaquim Jacó Tavares exercia trabalhos como músico, vidraceiro, padeiro, encanador, eletricista e agricultor: “Moramos em vários lugares. Meu pai fazia de tudo, não tinha escolha porque eram oito crianças para alimentar”.
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Quando a segunda guerra mundial teve início, o pai de Jecy comprou uma chácara em Paraguaçu Paulista e cultivou cada palmo de chão, já que a comida estava racionada.
“A gente ralava a mandioca, enchia as latas. No outro dia jogava a água que se formava e ficava só a parte sólida concentrada. Minha mãe punha essa massa nuns panos branquinhos e colocava no sol pra secar – aquilo era o polvilho”.
Com o polvilho, a mãe de Jecy fazia biscoitos, pães, brevidades, assados em folhas de bananeira, sempre no fogão à lenha. Outra lembrança de infância é o café de garapa: “Meu pai plantou cana, a gente fazia a garapa que era usada para fazer o café”.
Jecy estudou em Santa Cruz do Rio Pardo, no Grupo Escolar Professora Sinharinha Camarinha. Quando terminou o quarto ano a guerra teve início, e ficou difícil continuar os estudos. “Quando cheguei a Ourinhos já era mocinha. Queria estudar, mas aqui não tinha curso noturno. Eu achava chato ficar misturada com as crianças pequenas, então resolvi trabalhar”. Com a ajuda de um primo ela conseguiu uma vaga na Singer, que na época estava instalada na Praça Mello Peixoto, na área onde hoje existe um terreno, entre a Farmais e o Bradesco. Entre risos ela faz uma revelação: “Diziam que quem trabalhava na Singer arrumava namorado… e eu arrumei!”.
Mas a experiência durou poucos anos. Quando ainda nem se falava em licença-maternidade, uma moça casada não era bem-vinda no ambiente de trabalho. Jecy soube aproveitar o conhecimento adquirido na empresa e seguiu pedalando sua própria máquina de costura. Mas ela teria de enfrentar outro obstáculo:
“Queria ter o meu dinheirinho, ser independente. Meu marido achava ruim. Eu tinha que esconder os tecidos quando ele chegava, pra não ver que eu estava costurando pra outras pessoas”.
Sem se abater, Jecy deixou seu espírito empreendedor falar mais alto, e transformou a copa de sua casa em sala de aula, onde passou a ensinar corte e costura. Hoje ela encara aquelas dificuldades com bom humor.
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O marido morreu quando a caçula dos quatro filhos tinha apenas um ano e meio, e os meninos mais velhos precisaram trabalhar. Jecy encarou um novo desafio quando resolveu mudar de ramo, fazendo marmitas em casa, que eram entregues na vizinhança e lojas de comércio. A entrega das marmitas ficaria por conta do filho Jicó.
Alguns anos e muitas marmitas depois, Jecy resolveu “abrir uma portinha” para vender comida na Rua Paulo Sá. A ideia inicial era vender comida pronta, para ser consumida em casa: “Trabalhamos muito, o Jair, o Jicó e as esposas, na luta. Fiz de tudo lá, trabalhei na cozinha, depois fazendo doce, depois no balcão”. Gostando ou não da função, a realidade é que não havia opção, nem condições para contratar funcionários. “Então eu fazia”, diz Jecy. Ao longo desses 27 anos, desde que o negócio foi aberto, as instalações foram ampliadas e se transformaram no Restaurante Bon Vivant, e Jecy assumiu outra função: “Faz muitos anos que trabalho no caixa”.
A infância vivida em meio às refeições simples preparadas pela mãe (arroz, feijão, uma carninha de panela, mandioca cozida…) ou o lanche que o pai servia na padaria em São Pedro do Turvo ao pessoal que vinha do sítio (ovo frito e sardinha em lata com pão) foram dando lugar a conhecimentos de uma culinária mais elaborada.
Se existe um segredo para tanta vitalidade, talvez o nome seja trabalho. “Tenho muito prazer em trabalhar, não me vejo longe dali. Vou a pé, andar faz bem pra saúde. Trabalho todo dia, das 11 da manhã às 5 da tarde. Se não vou, sinto muita falta”. Duas vezes por semana, ela se dedica às atividade da UATI. “Pra mim é muito importante, não consegui estudar, então é uma compensação. Passei a vida trabalhando, e sou muito feliz. Meus filhos, netos e bisnetos têm saúde. Não me falta nada”, resume Jecy, que é carinhosamente chamada de vó pelos funcionários e frequentadores do restaurante.
Embora tenha perdido o marido muito cedo, Jecy nunca pensou em se casar novamente, e dedicou todo seu tempo ao trabalho e a criação dos filhos: “Eu parecia uma galinha choca com os meus filhos. Quando eu fiquei viúva, uma pessoa da família pediu que eu desse minha filha caçula para ela criar. Como eu ia dar um filho? Filho não é um gatinho ou um cachorro…”.
Além do trabalho que a mantém ativa e em contato com centenas de pessoas todos os dias, Jecy diz que o segredo de se viver feliz é ter amor à vida e conviver com pessoas que queiram o seu bem. “Eu gosto de agradar as pessoas, de cultivar amizades. Trabalhando no caixa, sempre dou uma balinha pra quem eu atendo. Meu neto brinca dizendo que eu devo ter um trato com algum dentista da cidade!”, brinca a vó Jecy.
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