Catorze dias ou A barata do Sérgio Sant’Anna

20 de abril – segunda – 10h15

O celular continua programado para tocar às 6 horas, mas não consegui sair da cama. Ontem a coriza aumentou e tive um pouco de febre. O laboratório me orientou a ficar em casa. Estávamos trabalhando em turnos e obedecendo as normas de proteção e distanciamento. A produção de medicamentos já exige cuidados no seu dia a dia. A tosse aumentou. Minha mãe ligou e ficou angustiada. Disse a ela para se cuidar e que em breve poderemos nos ver. O resultado do exame deve sair amanhã. Hoje já recebi a primeira ligação do serviço de saúde que monitora os casos suspeitos de Covid-19. Conferi a geladeira vazia e preciso fazer as compras pela internet.

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20 de abril – segunda – 20h30

Amigos do laboratório ligaram, outros enviaram mensagens. O dia foi tranquilo e agora vou acompanhar o noticiário da tevê. Durante o dia fiquei assustado com as imagens de Manaus, todas aquelas covas e tratores abrindo valas. Elisa, moradora do quinto andar, enviou mensagem meio apavorada. Ela é portadora de uma doença autoimune e não sai de casa há dois meses. Também me contou que ficou revoltada com a reação de alguns moradores que sugeriram que eu saísse do prédio após o comunicado do síndico informando sobre o meu caso. Acho que as pessoas se assustam com o desconhecido, principalmente quando o problema está mais próximo. Essas mesmas pessoas vinham negando a gravidade da pandemia, talvez por ouvirem isso do próprio presidente. Vou fazer um chá e tentar dormir mais cedo.

22 de abril – quarta – 10h

Dormi mal. Tive febre e tossi a noite toda. Ontem chegou o resultado do exame, deu positivo. Tinha certeza, os sintomas conferem, não sinto gosto nem cheiro de nada, por isso é difícil comer. Fiquei com medo. Morrer com falta de ar deve ser terrível. Pensei nas coisas práticas. Por que não fiz um seguro de vida? Pelo menos minha mãe teria algum consolo. Dinheiro não é tudo, mas é importante. Senti revolta, sou jovem para morrer, não terei tempo para escrever alguma coisa marcante, concorrer e quem sabe ganhar um prêmio literário. Uma vida meio besta, sem deixar nada. Nem filhos eu tive ainda.  Talvez fosse melhor ter reatado com a Márcia. Ela tem ligado todos os dias. O porteiro ligou ontem à noite, disse para eu colocar o saco de lixo na porta que ele mesmo retira. Querem evitar que eu use o elevador. De manhãzinha, quando fui fazer isso, vi um papel grudado na porta de entrada. Tinha o desenho de uma caveira, parecia coisa de criança. Minha casa está marcada como foram as dos judeus durante o nazismo.

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Dia 26 de abril – domingo – 18h15

Dei de cara com minha imagem no espelho depois do banho, até assustei. Olheiras, cabelo desgrenhado e precisando de corte, barba há dias sem fazer. Desde ontem me sinto um pouco melhor, mas tenho um cansaço absurdo que me impede de fazer qualquer coisa. O Rubem Fonseca morreu faz uns dias. Não foi do vírus, foi de velho mesmo. Separei um livro de contos dele pra reler, mas ainda não consigo. Vejo o noticiário na tevê, um horror seguido de outro. O presidente faz de tudo para livrar seus filhos da polícia. Se conseguirem provar que as fake news determinaram a vitória das últimas eleições, aí sim tudo muda. Ele continua insistindo para o povo tomar cloroquina, que pode curar a doença ruim, mas sei que não é assim. Tenho amigos que trabalham no laboratório que fabrica a substância, talvez ganhem mais dinheiro com as comissões agora – tem males que vêm pro bem de alguns. Enquanto isso, as notícias contabilizam o aumento das mortes. Espero não virar estatística.

Dia 27 de abril – segunda – 10h30

“O homem pega um tijolo inteiro, besunta com uma pá de cimento e coloca no vão. Volta, pega outro, lambuza com cimento e coloca ao lado, formando uma fileira. Em poucos minutos a primeira etapa do descerramento da luz está concluída”. Não sei se descerramento da luz é uma boa expressão para contar sobre o trabalho do coveiro terminando de fechar o túmulo. Acho que de tanto ver notícia de morte meu texto foi ficando impregnado. Não saí de casa desde que começaram os sintomas. Apesar de todo o tempo livre, não me sentia bem para escrever. Hoje até tentei, mas não produzi nada que me deixasse satisfeito. Fui atender a Márcia. Queria vir me visitar, a doida. Disse que vestiria equipamentos de proteção. Disse para não vir, apesar de saber que me faria bem estar com ela.

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Dia 28 de abril – terça – 10h

Minha mãe ligou logo cedo. Difícil acalmá-la com toda essa situação. Não consegue entender como tudo isso pode acontecer, esse vírus que ninguém vê, o isolamento, as mortes… Pelo menos ela tem obedecido a quarentena, não sai de casa pra nada. Percebi que anda meio confusa. Outro dia me perguntou se não dá pra matar esse vírus com inseticida, como fazemos com pernilongos e outros insetos.

Dia 28 de abril – terça – 21h35

As manifestações de domingo ainda estão repercutindo nos jornais. Nunca imaginei que pudesse ver as torcidas organizadas protestando juntas contra o governo. O pau comeu na Paulista e a nas redes sociais a revolta é geral com a ação da polícia. O presidente continua agindo como se nada acontecesse, mas é pressionado cada vez mais. As mortes continuam. O mercado entregou as compras e o porteiro colocou tudo no elevador. Os enfermeiros entram no quarto parecendo astronautas, com máscaras, óculos de proteção e roupas estranhas. O hospital está lotado, sorte que conseguiu aquela vaga pelo SUS”. Pensei em inscrever o conto no concurso promovido por uma livraria da cidade do Porto, em Portugal. Vi algumas imagens do lugar, uma livraria centenária visitada por pessoas do mudo todo. Decidi que quero conhecê-la. Quem sabe depois da pandemia? Posso convidar Márcia.

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Dia 29 de abril – quarta – 14h30

Não passei bem a noite, tive febre. A enfermeira do serviço de saúde ligou e falou que devo ir para o hospital se a falta de ar não passar. Tenho medo de ser entubado.

Dia 30 de abril – quinta – 9h

Acordei melhor e assisti no Youtube a entrevista com um pesquisador falando do uso da cloroquina para combater o vírus. Lembrei das aulas de farmacologia. Na entrevista o professor fala da epidemia de gripe de 1918, e de como muitas pessoas morreram em decorrência das altas doses de aspirina. Hoje o presidente deu mais uma entrevista defendendo o tratamento com a cloroquina, mesmo com as pesquisas indicando os perigos da utilização do medicamento. Li uma notícia de um químico que foi preso vendendo cloroquina desviada de um laboratório. O cara se aproveitava do desespero das pessoas, loucas atrás do “remédio do presidente”. Márcia ligou para contar sobre a morte de uma tia há dois dias. Depois se arrependeu e disse que não queria me assustar. Aproveitei para falar de Portugal. Ela gostou da ideia da viagem e perguntou sobre o conto. Lembro da vez em que transamos no banheiro de uma livraria na Paulista, e ainda saímos sem comprar nada.

Dia 31 de abril – sexta – 16h

Conversei com o Pedro hoje, está desesperado. Quando começou o isolamento, ele tinha terminado a reforma do restaurante. Fez empréstimos, e agora não consegue pagar as contas. Teve que mandar funcionários embora, e ficou devendo salários. Está arrasado. Não pude consolá-lo, e me angustiei pensando em como vai sobreviver o Toni, meu amigo músico, com a suspensão dos shows e o fechamento dos restaurantes. Da sacada do apartamento vejo quem entra ou sai no prédio. Coloco uma cadeira ali e fico vendo o movimento. Agora sei como se sentem os pássaros presos. Vejo grupos de pessoas juntas, ignorando o perigo do contágio. Se soubessem como é, tomariam mais cuidado. Sinto falta de conversar com as pessoas. Até de abraçar. Penso na Márcia, em tudo que vivemos, e como seria melhor se estivéssemos juntos. Dei uma geral na casa, coloquei roupas na máquina. De tarde o sol entra na sala, e me sinto mais vivo.

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Dia 1º de maio – sábado – 9h

Hoje faz 12 dias que não saio de casa. O porteiro bateu na porta de manhã, disse que tinha ouvido falar que eu havia sido internado e queria se certificar. O medo faz as pessoas inventarem coisas. Tem gente que ajuda, e é um conforto. Outro dia a vizinha do lado deixou pedaços de bolo em uma vasilha na porta de entrada, com um bilhete simpático. Li que as indústrias farmacêuticas estão diminuindo a produção, porque faltam insumos importados. Não sei como será no meu retorno ao trabalho. Colegas comentam no grupo de zap que haverá demissões na empresa, o que me deixa angustiado. Se eu ganhar o concurso de contos da livraria portuguesa, vou lá receber pessoalmente, e levo a Márcia. Será uma lua de mel em terras portuguesas. Sonhar não custa nada.

Dia 1º – sábado – 19h

“O coveiro nem olha para as pessoas – não presta atenção, são tantos os defuntos”. O coveiro alisa o cimento no túmulo igual quem passa glacê na cobertura de um bolo, com capricho. Acho que vou terminar assim a história, em sintonia com os noticiários que me violentam todos os dias. Seria melhor não ver os jornais, mas ficar o dia todo em casa sem ter o que fazer é difícil.

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Dia 2 de maio – domingo – 8h15

Resolvi matar meu personagem. A morte pode ser uma boa solução para uma história mal resolvida. Não sei como escreverão no futuro sobre esse momento que que estamos passando. Alguns escritores gostam de mesclar histórias reais em seus romances. Talvez eu nunca seja um escritor de verdade, daqueles reconhecidos pelo valor da sua obra. Talvez seja sempre um farmacêutico metido a escritor. Muitos escritores tiveram outras profissões. Leio que Sérgio Sant’Anna morreu infectado pelo vírus. Um dos maiores contistas brasileiros, era formado em Direito e trabalhou a vida toda num tribunal do trabalho no Rio de Janeiro, e gostava de apostar em corridas de cavalos. Moro no Brasil, um país onde pouca gente lê, e sou apenas um farmacêutico que sonha em ser escritor. Lembrei de um conto do Sérgio em que a mulher de um embaixador come uma barata que nadava em sua sopa. Depois a personagem se joga da janela, e enquanto permanece estatelada na calçada a barata sai tranquilamente de sua boca. Meu conto não tem baratas saindo da boca de uma madame suicida. Eu sou um farmacêutico e o que tenho em comum com Sérgio Sant’Anna é que também fui infectado por esse maldito vírus. Estou aqui isolado, tentando escrever um conto que não chega ao fim e sonho com uma viagem a Portugal.

Dia 3 de maio – segunda – 14h

Finalizei o conto. Enviei para Márcia. Ela leu, fez algumas observações, e disse que gostou bastante. Acho que vou sobreviver. Márcia falou que quer ir para Portugal. Fiquei feliz e brinquei dizendo que tenho curiosidade de conhecer os banheiros das livrarias portuguesas. Olho pela janela, lá fora o mundo continua o mesmo e as pessoas permanecem distantes e com medo. A vida segue assim mesmo.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

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