A paz é uma ovelha disfarçada

Imagem: freepik

Existem questões muito embaraçosas de se investigar, pois, dentre outras coisas, somos uma espécie extremamente ressentida – ainda mais nos dias de hoje, que ficamos ofendidos por qualquer discordância. Se o leitor faz parte da geração “mimimi” e não está em condições de refletir sobre a realidade por outro ângulo, que não seja o seu… Paciência! O mundo é heterogêneo e não está aqui para bajular ninguém. Então, por alguns minutos recomendo que deixe seus conceitos de lado e vamos analisar juntos de maneira especulativa. Não quero que você apenas acredite nas minhas palavras. Seria a pior maneira de construir o conhecimento, isto é: cegamente, a partir da opinião de terceiros. Faça dos eventos do seu próprio cotidiano um laboratório legitimador. Do contrário, será um “militante de plástico” que defenderá a paz, vivendo em pé de guerra da porta para dentro – ou ainda, um poeta que fala de amor sem nunca ter amado. Podemos criar argumentos suntuosos, textos muito bem elaborados, não é tão difícil. Mas no fundo, serão vazios, sem propriedade, sem peso. Enfim, relatei tudo isso para que não me apedreje antecipadamente ao ler essa premissa: A GUERRA É UM MAL NECESSÁRIO PARA O ENTENDIMENTO E A EXPERIÊNCIA DA PAZ.

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Calma! Só lembra uma proposição extremista, contudo NÃO É. Escolhi as duas concepções (Guerra e Paz) por dois motivos. Primeiro: contrastar a própria ideia de contraste e em segundo lugar, não menos importante: desnudar a nossa autoimagem de “bons filhos”, no sentido de um Deus paterno.

Vamos lá…

1 – Independente do conceito que utilizamos para definir o termo VIDA, achará (em algum momento) uma raiz comum: o dinamismo. Ou seja, qualquer estrutura viva tem movimento e onde há movimento, há vida. Talvez, essa lei se aplique em todas as dimensões que compõe a existência: as transformações dos corpos, a troca gasosa das plantas, o percurso dos raios solares, o vento, os pensamentos, as emoções, a economia, a filosofia, até uma pedra ou um pedaço de plástico tem energia, que por sua vez é dinâmica. Tudo está em AÇÃO: movimentAÇÃO e transformAÇÃO. Se observar com cautela, perceberá que o movimento é sempre de um polo para outro, entre os extremos: alegria e tristeza, calor e frio, barulho e silêncio, amor e ódio, sístole e diástole etc. Uma pessoa que não está oscilando, é sinal que morreu. No exame eletrocardiograma, o paciente que deixou de apresentar movimentação gráfica – pico e vale – está morto. É um exemplo didático, pois o conceito de óbito atualmente é por diagnóstico encefálico, mas na prática, o “final” é uma questão de tempo. A vida é um pulso e a consciência surge devido à percepção dos contrastes.

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Imagine um planeta em que não houvesse luminosidade e que todos os dias fossem trevas. Se morássemos lá, não teríamos a ideia de claro e escuro. Na verdade, nem saberíamos desse conceito ou mesmo que viveríamos no breu. Só temos a consciência do que é dia, pelo contraste da noite. Um cego de nascença não tem a mínima noção do escuro, pelo simples fato de que não sabe o que é a luz. O contraste nos torna conscientes e nos faz atribuir valor às coisas. Suponhamos que nunca ficássemos doentes. Não entenderíamos o que é a saúde, nem daríamos bola para o nosso estado físico, psicológico ou social. A doença é o extremo oposto “necessário” para a compreensão do bem-estar. No geral, só damos a importância de um, na ausência do outro e vice-versa.

A experiência do quente só existe pela memória da experiência do frio. O parâmetro de alto, está relacionado diretamente com a medida do baixo, tanto quanto o juízo de certo está para o errado e o da fome está para a saciedade. São preceitos indissociáveis. Superficialmente, parecem opostos e separados. Todavia, é apenas nossa falta de visão panorâmica, fortalecida pelas dificuldades da linguagem. Ambos (que na realidade são um) são complementares, únicos. Tente arrancar uma parte da moeda – a coroa – para deixar só o lado da cara. Não Dá! É impossível. Cada vez que cortar uma face dela terá, de maneira automática, a outra parte complementando. Se conseguíssemos (hipoteticamente) separar um lado da realidade para ficar somente com a que queremos, não seríamos conscientes do lado escolhido.

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Me fiz entender, leitor? Deixarei mais explícito: Sigmund Freud (médico austríaco “criador” da psicanálise, 1856-1939) chegou à dura conclusão que nunca seremos felizes – no máximo nos ajustaremos à sociedade com êxtases momentâneos. Para ele, a nossa “ânsia pela felicidade advém da satisfação dos prazeres”. Somos seres complexos que querem o tempo todo e, se conseguíssemos realizar todos os nossos prazeres, não seríamos conscientes da própria satisfação, pois para a experienciar, é necessário o oposto: a insatisfação de algo não feito. Um paradoxo dos bravos para resolver: por um lado, realizaríamos todos os desejos sem repressões morais – igual a um felino selvagem, voltando às condições animalescas. Do outro, não estaríamos conscientes da felicidade oriunda das satisfações.

É um axioma matemático: Se eu for feliz ininterruptamente, seria inconsciente do meu próprio estado de ânimo. Simples assim! E da mesma maneira ocorre com a paz. Seu conceito define-se pela ausência de guerra, quer dizer: ela (a paz) não existe por si mesma e a guerra também não – são ligadas. Uma “simbiose” existencial imanente. Eu sei que é trabalhoso imaginar a impossibilidade de NÃO viver em paz tendo-a constantemente. Não encaixa na mente, já que experienciamos todos os dias a tristeza, o ódio, a dor, a guerra e sabemos o quanto é sofrido. Como não poderíamos reconhecer a paz? Então acreditamos (com honestidade) que, se não existissem os conflitos e a discórdia, viveríamos em harmonia. Engano!

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Claro que eu gostaria de viver em um mundo sem guerra, morte, sangue, confronto, desacordos etc. O que está em pauta não é isso. Estou mostrando outra perspectiva de funcionamento, como o processo se desenrola nas raízes. Um outro modus operandi, que por sinal é muito antigo. Não estou apresentando um fundamento inédito. Os taoistas, os budistas, os hindus, os sufistas já falavam: não há nada novo! É o contraste dos eventos que nos faz enxergar o mundo. Basta tentar escrever com um giz branco em uma lousa da mesma cor, que constatará imediatamente. Não verá nada! A dinâmica se move pelo contraste. Risque o pneu de um carro e veja: ao rodar, o risco hora estará em cima, hora em baixo. A vida se movimenta assim nas vicissitudes, e a consciência brota desse contraste.

As pessoas que desejam excluir a guerra para viver em paz, não sabem o que estão querendo. São crianças inocentes, imaginando a chance de existir um conto de fadas, sem a presença de um “vilão”. Elas sim, estão cegas de verdade. Não querem enxergar as coisas como são. E o segundo motivo pelo qual escolhi esse tema, se encaixa justamente aqui:

2 – Criamos uma autoimagem de nós mesmos para a sobrevivência. Se ficássemos “nus” em frente à nossa própria realidade como ser humano, não aguentaríamos. Somos bichos egoístas, interesseiros, mentirosos, carentes, gananciosos e por aí vai… A psicologia evolucionista afirma exatamente isso. “Não suportaríamos nos encarar”. Ficaríamos depressivos, frustrados, tristes, angustiados, coléricos. Entende por que idealizamos uma autoimagem de bonzinhos, centrados ou pacíficos? Do contrário, cometeríamos suicídio. Ninguém está em paz de fato. Sidarta Gautama (o Buda histórico) disse: “A vida é sofrimento” e a felicidade é apenas a lacuna. Concordo plenamente com ele nesse aspecto. E digo o equivalente para guerra: a paz só é o intervalo entre dois conflitos. A vida é um campo de batalha em todos os níveis. Sri Nisargadatta Maharaj (místico indiano do século XX) declara: “Vida se alimenta de vida”. Observe ao redor. Não tem outro jeito. Quem se intitula pacífico ou enche a boca para dizer que está em paz… nem sonha que ela é “UMA OVELHA DISFARÇADA”.

| Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Jornal Biz. |

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