Para que nunca te esqueças

Ilustração sobre foto: Bernardo Fellipe Seixas

Minha filha se parece mais com ela do que eu. Em mim, talvez as mãos descarnadas e as unhas fracas. Encolheu com a idade, ela dizia, rindo sem pudores, como era seu jeito. Viveu mais de meio século com meu avô. Depois que enviuvou, teve que fazer o café da manhã pela primeira vez em todo o tempo de casamento. Preparar a primeira refeição do dia foi a forma que meu avô encontrou de mostrar seu amor por ela. Parecem felizes na foto, ela com os fartos cabelos presos em um coque, e ele com o eterno cigarro entre os dedos. A fumaça fazia círculos no ar, e ele brincava com as crianças dizendo que fabricava nuvens. Minha avó ralhava, o descuido dele provocava acidentes com as roupas, onde eu contava: quantos buraquinhos?

Em situações de cansaço, penso que viver no tempo em que ela viveu talvez fosse melhor. A vida doméstica pode ser muito rica. Saber o ponto exato da massa de pão tem seus segredos, costurar a roupa da família, cuidar da horta, medir as febres, cozinhar. O tempo não volta, penso enquanto escolho o sapato que combina melhor com o vestido para a reunião do dia, e separo as roupas para lavar. Prometo que no final de semana vou até a casa dela para dar um jeito nas roupas e outras tranqueiras. Os móveis ficarão para a cuidadora, que está em isolamento depois que minha avó morreu e o teste deu positivo para o coronavírus.

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O chão da varanda tingido de vermelhão encerado contrasta com o verde das samambaias penduradas por correntes que descem das vigas de madeira. Gostava de plantas, parecia conversar com elas. No fundo do quintal a enorme mangueira que servia de abrigo nos almoços de Natal – as crianças correndo e os mais velhos jogando truco e bebendo cachaça. Fazíamos um buraquinho nas mangas mais maduras e ficávamos chupando; as mangas de vez, a fruta ainda num estágio intermediário, quase verde, eram saboreadas com pitadas de sal. Alguns vestígios ainda lembravam a horta, que num tempo distante era organizada em pequenos retângulos de terra, onde alfaces e couves dividiam espaço com cebolinhas e salsinhas sempre bem cuidadas. Há tempos que preparar a terra ou carregar o regador de lata transformaram-se em esforços além da sua capacidade. A dor nas juntas abreviou algumas tarefas.

Girei a chave na fechadura antiga e entrei. O cheiro da casa sugere acolhimento, um abraço que não há mais. O assoalho de madeira da sala ainda range, como se o ruído de tantos anos já fizesse parte do ambiente. Uma colcha de chenille amarela ainda cobre a velhice do sofá. A poltrona da direita era onde se acomodava para assistir as novelas ou para crochetar as toalhinhas que ficavam sobre as mesas. Fui até a cozinha. Ainda estavam lá o velho bule de café, o filtro de barro, a cortina xadrez. Como tudo ainda permanecia no seu lugar, era como se a qualquer momento começasse a sentir o cheiro do bolo de fubá assando no forno. Um longo corredor levava até o quarto onde ela dormia. Na parede, acima da cama de casal, um grande crucifixo de madeira continuava por ali. Minha avó gostava de dizer que os móveis do quarto ainda eram presentes de casamento, o guarda-roupa, a cômoda, a penteadeira com velhos vidros de perfume e os dois criados, um de cada lado da cama.

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Abri a janela do quarto e a luz do sol aqueceu o ambiente. Ajeitei as caixas de papelão sobre a cama. As roupas serão doadas para o asilo. Fui dobrando as peças sem pressa, procurando sentir nelas o perfume da vó. Separei os cabides em outra caixa. Quase terminando, peguei o casaco marrom de crochê, feito por ela. Senti doer o peito quando percebi um fio de cabelo branquinho preso nas tramas da lã.

Minha avó sobreviveu à gripe espanhola em sua infância portuguesa, mas não resistiu ao novo vírus na terra que a acolheu e viu nascer seus filhos. Chegou ao Brasil em 1928, com a família, depois de 15 dias de viagem no navio “Vera Cruz”. Já no final da vida as lembranças da infância e juventude ficaram mais frequentes, e contava das festas da desfolhada que aconteciam no pátio da Igreja de São Roque, na aldeia portuguesa onde nasceu e das tardes frias colhendo batatas no campo. Não demorou muito a casar com meu avô brasileiro. Os dois se conheceram na pequena cidade do interior, onde a família foi morar quando chegaram ao Brasil. O pai fez questão de bancar a festa que aconteceu no sítio da família. O sanfoneiro tocou sentado em uma cadeira colocada em cima da mesa, e o baile continuou madrugada adentro, enquanto os noivos se esgueiraram para a primeira noite juntos, na casa onde viveriam, ao lado da casa do pai.

Limpei o guarda-roupa e fui abrindo as gavetas da penteadeira, o sol já sumindo e eu com pressa para terminar antes que escurecesse. Abri a antiga caixa de lenços, e dentro havia dessas coisas que costumamos guardar e nem sabemos a razão. Botões perdidos, presilhas de cabelo, santinhos de missas de sétimo dia com a imagem daqueles que já se foram e um giz cor de rosa. Foi numa caixinha revestida de couro marrom e fecho dourado que encontrei o brinco com pequeno pingente – no centro, a pedrinha de tom avermelhado lhe garantia ainda mais delicadeza. Sob o tecido bege que lhe servia de forro notei o pedaço de papel dobrado.

Meu vô morreu num dia de eleições. As pessoas se dividiam entre o velório e as urnas de votação. O caixão foi acomodado no centro da sala. Foi a única ocasião em que o crucifixo deixou o quarto do casal – naquele dia ele deveria compor o cenário que incluía ainda duas velas e uma bíblia aberta numa página qualquer. Minha vó se manteve sentada até o momento em que as mulheres anunciaram o início do terço. A contragosto, um candidato que havia chegado naquele momento ameaçou acompanhar a reza. Foram décadas de convivência e cumplicidades. Pensei que talvez não vivesse todo esse tempo. Quem vai saber?

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Vi a letra levemente inclinada do bilhete e lembrei das aulas de história, quando tentávamos decifrar as cartas enviadas pelos reis declarando guerras, relatando viagens e descobertas. Mas ali se tratava de um bilhete mantido durante décadas sob o forro de uma caixa de brinco. Cercada de lembranças por todos os lados, me surpreendi com uma confidência que talvez revelasse um episódio distante no tempo, mas que se manteve presente uma vida toda no fundo de uma gaveta. Terminei de guardar as roupas, coloquei a caixinha no bolso e passei a imaginar quem teria escrito aquelas poucas palavras que ganharam a eternidade em minha vó: “Para que nunca te esqueças daquele que sempre te amará”.

Fechei a casa e coloquei as caixas com as roupas no carro, deixando tudo na garagem. Amanhã eu daria um fim naquilo tudo, mandaria levar os móveis e passaria na imobiliária para colocar a casa à venda. Resolvi caminhar um pouco, aproveitar o resto de luz daquela tarde de abril. No bolso do casaco, a caixinha com o brinco e o bilhete. Sentei em um murinho na sombra de uma sibipiruna que coloria a rua de amarelo com suas flores, e coloquei o brinco em mim, com reverência, observando as pessoas que passavam ressabiadas, vestindo máscaras para se proteger na epidemia. Pena que não tinha ali um espelho para conferir. Emocionada, lembrei-me da ocasião em que minha avó contou de um namorado que havia deixado em Portugal e de quem nunca mais teve notícias, e da mágoa que sentia por não ter conseguido se despedir dele. Agora carrego comigo parte do seu passado, como se estivesse a segredar lembranças de um amor distante.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

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