No rosto abatido a ansiedade dos olhos se ressalta

Da cama ele vê a porta do banheiro aberta, e conta 18 azulejos brancos: seis vezes três. À direita, a janela tem oito vidros na horizontal e cinco na vertical, oito vezes cinco. Conta várias vezes os nove quadrados de cerâmica do piso na horizontal e sete na vertical. A janta chega antes das 18 horas e Rivaldo nunca tem fome aquela hora. O companheiro de quarto também tem o vírus, e delira de febre.

Os enfermeiros entram no quarto parecendo astronautas, com máscaras, óculos de proteção e roupas estranhas. O hospital está lotado, sorte que conseguiu aquela vaga pelo SUS. Medem a febre, que nele continua baixa e persistente. A falta de ar está aumentando. Lembra-se rapidamente daqueles pesadelos recorrentes em que se via sufocado diante de um inimigo ameaçador. Nunca acreditou nessas bobagens de interpretação de sonhos e a maior das ameaças sempre cessava ao despertar. Já avisaram que não tem respiradores para todos os pacientes.

Hoje a mulher não foi trabalhar no restaurante. Procurou o escritório de um vereador para conseguir o respirador. Dizem que se um político pedir, o aparelho aparece. Por causa do isolamento do marido, Sandra recebe notícias através de uma faxineira que trabalha em turnos alternados e que foi sua amiga de escola. Ela sabe tudo o que acontece naquela ala, e contou sobre a falta de respiradores. O vereador diz que estão providenciando a compra dos equipamentos, mas que é preciso ter fé acima de tudo. Sandra ouve calada, deixa o café servido frio sobre a mesa e resolve ir ao parque onde caminhavam. No parque vazio percebe como a vida havia se transformado naqueles dias. Apenas os pássaros permaneciam alheios e já iam se acomodando nas árvores como faziam todos os finais de tarde. Sentou-se sem se importar com o cocô seco que cobria o banco, e respirou profundamente como fazia com Rivaldo após as caminhadas.

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Rivaldo foi levado ao hospital numa quarta-feira pela manhã. Havia passado mal durante a noite, e com tantas notícias sobre o vírus, Sandra chamou um uber logo que amanheceu. O destino da corrida fez com que o motorista não se preocupasse em disfarçar sua apreensão, descendo rapidamente todos os vidros do carro. Seguro morreu de velho, pensou enquanto dirigia. Enquanto observava um pequeno terço que balançava no espelho do carro, Sandra flagrou o olhar curioso do motorista. Na chegada, os dois perceberam o caos que se anunciava. Pessoas com máscaras, filas que não se moviam e funcionários tentando organizar a precariedade. Aparentemente despreocupado, um pipoqueiro permanecia ao lado do seu carrinho. As pipocas e o algodão doce eram os únicos vestígios de normalidade que ainda restavam naquela manhã.

Alguém da fila gritou pedindo ajuda, percebendo os olhos vermelhos e a respiração ofegante de Rivaldo, apoiado nos ombros de Sandra. Ajudado pelo enfermeiro paramentado, ele sentou na cadeira de rodas que foi empurrada rapidamente subindo a rampa. No balcão, ao lado da mulher que dava informações para preencher a ficha, observava cabisbaixo o murmurinho no hall do hospital. Tem convênio? Cartão do SUS? Identidade ou CPF? Carteira de vacina? Endereço? O que a senhora é dele?

Foi quando percebeu o lírio da paz, que agonizava precisando de água, como ele de ar. O vaso estava em um canto onde uma porta conduzia a um corredor comprido. As folhas verdinhas murchavam, e as pontas encontravam o chão. Uma caneca d´água e as folhas se ergueriam, altivas. Se ficasse muitos dias internado, seu jardim iria secar. Sandra não se ocupava com as plantas, criticava seu apego dizendo que era falta de ter o que fazer. Pensava nisso quando alguém começou a empurrar a cadeira pelo corredor, depois de ter explicado para a mulher que não, não poderia visitá-lo, mas seria possível conversar por algum aplicativo. Ficaria em uma ala isolada, reservada para os contaminados pelo vírus. Boletim médico uma vez por dia, também pelo aplicativo. Virou para trás, para ver melhor o lírio, e percebeu o jeito angustiado da mulher, imóvel enquanto ele se afastava.

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O prédio do hospital era antigo, com corredores largos e paredes descascadas. Pendurado no teto, um grande relógio marcava sempre a mesma hora. Mário já estava lá há três dias e apenas acenou com a cabeça enquanto o enfermeiro acomodava Rivaldo na cama com lençóis muito brancos. Mário arriscou um primeiro contato com a voz ofegante e apontou para a cama vazia, dizendo que o outro tinha ido para a UTI logo cedo. Começou a ficar roxo e pensei que ia morrer. O enfermeiro olhou para Mário um pouco contrariado. Notou a janela com venezianas de madeira pintadas de um azul claro. A janela estava fechada e a vontade de Rivaldo era de abri-la e meter seu rosto para fora na tentativa de aliviar um pouco a falta de ar. Deitou e fechou os olhos imaginando que aquilo tudo poderia ser um sonho, e que acordaria apenas assustado. Estenda o braço. A voz do enfermeiro o trouxe de volta à realidade. Não conseguiu identificar se era o mesmo, todos se escondiam atrás daquelas máscaras. Feche a mão. Uma picadinha. O soro começou a pingar bem devagar. Outra enfermeira surgiu trazendo numa bandeja outra máscara, diferente das que usavam. O oxigênio lhe deu uma discreta sensação de alívio. Pensou em Sandra e lembrou que todas as quartas costumavam ir a lanchonete de um amigo beber cerveja. Ela adorava comer espetinhos de queijo coalho. O soro continuava a pingar lentamente.

Se fosse um sábado normal, Sandra visitaria o pai na Casa de Idosos. Levaria bolo de fubá, receita da mãe, que morreu de um ataque do coração há dois anos. Com medo de também ter sido contaminada pelo vírus, resolveu só ligar e ouviu da assistente social, que sim, ele estava bem, que viesse na próxima semana. Não foi fácil decidir que o pai deveria viver naquele lugar. Com a morte da mãe, ele foi ficando cada vez mais apático, e enxergava mal. Deixá-lo sozinho em casa nem pensar, e o salário de cozinheira não dava para pagar uma cuidadora. Ali a estadia foi acertada com o pagamento integral do valor que o pai recebe desde que se aposentou como cabo da polícia militar. O prédio pareceu limpo, havia um pátio coberto e um jardim com bancos onde, pela manhã, o pai poderia tomar sol e quem sabe até fazer amigos, apesar de nunca ter sido de muita conversa.  Nas visitas de sábado à tarde Sandra puxava assunto enquanto servia o bolo e café que trazia em uma pequena garrafa térmica. O pai respondia entredentes, por obrigação. Na próxima semana ela precisava contar que Rivaldo estava com o vírus, e da agonia que estavam passando. O pai nem se condoeria, pois nunca botou fé naquele casamento.

Segure o ar. Pode respirar. O exame realizado ainda na noite anterior apresentava diversas lesões nos pulmões. Os dois tiveram febre, e Mário pouco falava. Os únicos sons eram de conversas distantes no corredor, além do barulho produzido pelas macas conduzidas pelos enfermeiros. Uma delas passou por Rivaldo quando foi levado para o setor de radiologia. O volume coberto totalmente pelo lençol branco era sinal de que havia mais um leito disponível. Rivaldo lembrou-se de quando ele e os colegas da escola observaram um eclipse solar utilizando chapas de raio X. Achava mais interessante contar os doze pares de costelas exibidos na imagem.

Somente os enfermeiros sentiam o cheiro do almoço que já tomava conta do corredor. Mário foi levado à UTI. Mesmo abatido e sem forças, o colega não dispensava a sopa sem cor servida no recipiente de isopor, e não se preocupava com o sabor. Não sinto gosto de nada há vários dias. Rivaldo não tinha fome. Desde que sentiu os primeiros sintomas começou a perder o olfato e a vontade de comer. Riu quando lembrou de Sandra devorando pratos de macarrão na casa do pai. A sopa chegou. Não soube mais de Mário.

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Antes da mãe de Sandra morrer, os domingos de folga do restaurante aconteciam na casa dos sogros. O casal entrava pela porta da cozinha sempre aberta, que logo cedo recendia a alho e cebola. A mulher ficava na cozinha ajudando a preparar a comida, e Rivaldo ia para a sala, a TV ligada em jogo de futebol. A conversa com o sogro não fluía, e de vez em quando a intervenção de Sandra ou um agrado no vira-lata desanuviava o ambiente. Desde o dia em que o pai de Sandra o flagrou com uns amigos fumando maconha nos fundos do Bar do Joca, nunca deixou de olhá-lo com recriminação. Não adiantava trabalhar gastando as retinas nas letras miúdas das notas fiscais no escritório do supermercado, de manhazinha até anoitecer. Bebia pouco, não fumava. Mas para o sogro, era um vagabundo maconheiro. E preto. Bem que a filha podia ter escolhido melhor. Moça bonita, de pernas e dentes bem feitos, puxou o mulato da mãe. Podia bem ter branqueado a raça, mas não, foi casar com um negro, e ainda por cima maconheiro. Podia ter sido outra coisa, a filha única. Secretária de algum bacana, gerente de loja ou até professora. Presença ela tinha. Mas se engraçou com Rivaldo e acabou se conformando com o emprego de cozinheira do Restaurante Tropical.

Akira contratou a cozinheira mesmo sem muita experiência. Ela disse ao japonês baixinho, que parecia sempre estar sorrindo, que sabia fazer um prato ensinado pela mãe. Às quintas-feiras Akira abandonava o caixa e corria para os fundos do restaurante. Em meio aos empoeirados engradados de bebidas, assistia excitado a habilidade de Sandra em golpear com firmeza o pescoço da galinha. A faca precisa estar bem afiada. Deleitava-se quando a via sustentar a ave com aquelas mesmas mãos morenas, agora com delicadeza. O líquido escuro escorria para tigela. O sangue fresco é que faz a diferença. É preciso juntar duas colheres de vinagre. A galinha à cabidela acabou se tornando a estrela do cardápio do Tropical. Sandra deixava satisfeitos os clientes do restaurante, mas alimentava principalmente os desejos de Akira. Foi num final de expediente que o patrão contou sobre as lembranças da família. Apenas a irmã ainda era viva, mas não a via há muito tempo. Mostrou mais os dentes quando Sandra falou que japoneses sempre vendiam pastéis na feira, não galinha à cabidela. Entre um gole e outro de cerveja, trocaram olhares. E o japonês sorria. Foi Akira quem sugeriu o nome do vereador para Sandra. Foi meu colega de escola, talvez ajude. Falou, mas não acreditava que ele fosse resolver.

Mais uma semana e Rivaldo não melhorava, e nada do respirador. Havia poucos no hospital, e os médicos escolhiam os pacientes que usariam os aparelhos, priorizando os mais jovens. Rivaldo respirava fundo, agoniado. Não adiantava, é como se tivesse as narinas tampadas, inúteis como a dos mortos, adornadas com chumaços de algodão. Sandra contou que tinha ido ao escritório do vereador, indicado por Akira. Se não bastasse estar quase morrendo naquela cama de hospital, ainda tinha a humilhação de ser ajudado por aquele japonês. Acha que não percebo quando olha para a minha mulher, seu japa safado dos infernos? Se conseguisse um emprego melhor, ela não iria mais trabalhar. Ficaria em casa, só para ele. Bem que o sogro o criticava pela filha passar o dia todo fora, culpa dele, incapaz de sustentar a casa. O velho não, se vangloriava de nunca ter precisado que a mulher trabalhasse. Dizia que era homem o bastante e que nunca faltou nada em casa.

Sandra ia visitar o pai neste final de semana. O pedido da mãe, feito em uma longínqua tarde de domingo, sempre voltava à lembrança. Estava fazendo o que prometera, iria cuidar dele. Abraçava o pai, apertando os ossos magros.  Contaria da doença de Rivaldo enquanto tomavam café. Provavelmente ele perderia o emprego quando saísse do hospital, e as coisas ficariam mais difíceis. Suspirou, e quase sorriu pensando nos olhares do patrão, no jeito atencioso com que falava com ela, e o quanto se deliciava com o prato que preparava às quintas-feiras, passando um pedaço de pão no prato para aproveitar o molho bem temperado e limpando com prazer a boca engordurada. Seu pensamento era interrompido pela imagem do marido na cama, derrotado por um inimigo invisível que minava suas forças. Amava Rivaldo, mas não era a ideia de sentir-se desejada por outro que pesava. O peso que arqueava sua coluna além de sua capacidade, eram seus próprios sentimentos, a constatação de que a vida começava a se revelar em caminhos tortuosos e imprecisos. Pensou em abandonar o emprego. Outras cozinheiras, outras receitas. Lembrou-se dos pastéis de feira, e do sorriso de Akira.

Rivaldo foi levado para a UTI. O celular tocou quando se aproximava do hospital e sua única reação foi se escorar nas grades altas que cercavam o prédio. Teve vontade de vomitar, mas não tinha nada no estômago. Sentia apenas um vazio, uma sensação de impotência diante de tudo. Comprou uma água, atravessou a avenida e se acomodou num dos bancos da praça onde enfermeiros descansavam após o almoço. Era o início da primavera e a sombra de um imenso flamboyant envolveu seu corpo cansado. Um vento leve a fez respirar profundamente, e sentiu-se conduzida apenas pelo destino, sem resistência, sem pensamentos.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

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