Nos dias que antecederam o início da Copa da Rússia muito se falou de certo desinteresse do brasileiro pelo maior evento do futebol mundial. Porém, para dezenas de crianças, e muitos pais, que se reuniram nos últimos fins de semana na banca de revistas da Praça dos Burgueses para trocar figurinhas da copa, o interesse pelo futebol permanece inalterado.
Desde que Charles Miller, filho de um engenheiro inglês da Estrada de Ferro São Paulo Railway, trouxe para o Brasil em 1894 as primeiras bolas, camisas e chuteiras, o futebol cresceu e passou a ocupar um espaço privilegiado na vida dos brasileiros. E o football chegou dividindo opiniões; se para Monteiro Lobato a prática do futebol era uma forma de afirmar a identidade nacional, para Graciliano Ramos o novo esporte não passava de “fogo de palha”. Em 1916, o autor de Vidas Secas escreveu: “Ora, parece-nos que o futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O futebol não pega, tenham a certeza”. O tempo passou, e diferente das previsões do escritor alagoano, o futebol pegou no país.
Em Ourinhos, o futebol começou a ser praticado já nos primeiros tempos da cidade. Em 5 de junho de 1919, foi criado o Clube Atlético Ourinhense, por iniciativa de alguns representantes de famílias tradicionais da cidade.
Segundo Carlos Lopes Baia, pesquisador do futebol em Ourinhos, o clube foi fundado inicialmente para “estabelecer um local apropriado para suas reuniões, seus saraus, seus bailes, seus jogos de salão”, mas o futebol acabou se impondo como principal atividade esportiva.
No ano seguinte, em junho de 1920, surgiria o Esporte Clube Operário, constituído basicamente por trabalhadores que moravam “abaixo da linha do trem”. Em sua coluna No tempo da bola, publicada no jornal Negocião, o jornalista José Luiz Martins lembra que o Operário era o “representante da classe trabalhadora com muitos atletas oriundos das empresas ferroviárias, que formavam a maior parte do mercado de trabalho”. A distinção social definida pela estrada de ferro foi automaticamente transferida para o futebol, dando início à maior rivalidade esportiva da história da cidade. O campo do Esporte Clube Operário ficava na área onde hoje funciona o Centro Cultural Tom Jobim.
Por muitos anos as duas equipes se destacaram no cenário do futebol amador da região, revelando atletas e conquistando títulos. Mas a rivalidade era levada a sério, e a simples possibilidade de transferência de um atleta para a equipe rival era garantia de discussões acirradas.
Apesar das diferenças, as duas equipes tiveram passagem pelo profissionalismo. Carlos Lopes Baia destaca a existência de outros dois times nesse período: o Municipal Atlético Clube, fundado pelos primeiros funcionários da prefeitura, e o Aurora Futebol Clube.
Nos anos que se seguiram dezenas de times surgiram na cidade, como o Esporte Clube Vila Odilon (1934), Clube Atlético Ferroviário (1944), Esporte Clube Gazeta (1948), Associação Atlética Vilamar (década de 1940), Esporte Clube Olímpico (1943), entre outros.
É inegável que a prática do futebol, muito além de uma atividade esportiva, reforçou a interação social, e assistir a uma partida de futebol era também uma opção de lazer para homens e mulheres nas primeiras décadas do século 20. Muitos autores tentaram desvendar o envolvimento do brasileiro com o futebol, como o jornalista e historiador José Arbex em seu livro Cinco Séculos de Brasil: “A paixão futebolística tem um extraordinário poder de aproximar estranhos e criar ‘famílias’ que vestem as mesmas cores”. Em Ourinhos não foi diferente.
Em 1968, para comemorar o cinquentenário da cidade foi organizado o torneio “Festival de Futebol Ourinhos Cinquentão”. A competição foi vencida pela Sociedade Esportiva Palmeiras, da Vila Margarida, bairro onde foram criados alguns dos principais times que atuaram no futebol da cidade.
Naquele mesmo ano surgiu uma equipe que se transformou na verdadeira sensação do futebol da cidade durante várias temporadas. Batizado de Spartak, em homenagem ao time da então Tchecoslováquia, no ano seguinte a equipe passaria a se chamar Manchester United. Além da conquista de vários títulos, o time do Manchester foi, utilizando um termo comum na linguagem do futebol, um verdadeiro “celeiro de atletas”. Suas categorias de base formaram jogadores que atuaram em alguns dos principais times brasileiros profissionais.
À frente do trabalho do Manchester desde o seu início, estava um dos maiores incentivadores do futebol na cidade, Valdomiro Sebastião Ferreira, o Vardo. Depois de uma breve experiência como jogador, Vardo optou pela atividade de treinador, sempre com os olhos atentos identificando os talentos que se destacavam na equipe. Emocionado, ele se lembra dos primeiros contatos com o futebol:
“A gente jogava na Vila Margarida, entre as ruas 7 de Setembro e Fernando Costa, e íamos até o lixão próximo À mata do Eloy, onde hoje é a escola Sesi para procurar cobre. Vendíamos o cobre para comprar pacotes de figurinhas da época, e rezávamos para tirar as ‘carimbadas’ e com isso ganhar uma bola.”. Eram muitas as dificuldades, não havia bola, chuteiras, nem uniformes, e a molecada tinha que improvisar.
“Na sapataria eles desenhavam nossos pés, a gente pegava tachinha e pregava as travas e nessas travas a gente furava o pé, machucava”, ele lembra. Com restos de corda, ele tecia as redes, mesmo sem saber direito quais eram as medidas exatas entre as traves.
A ideia de manter uma escolinha de futebol surgiu desde o início. Vardo se lembra de um jogo disputado contra a equipe da Usina São Luiz, que foi determinante para o Manchester: “Nós fomos jogar na Usina, os aspirantes perderam por 10 a 0 e o titular por 6 a 0”. Na volta, em cima da carroceria do caminhão que transportava o time, os meninos lamentavam a derrota. Vardo, com apenas 16 anos e já como técnico do time, levantou e falou: “Nós somos grandes, e vamos ser o maior time e a maior escolinha de futebol de Ourinhos. Vamos voltar aqui e vencer a usina”. Anos mais tarde, sua previsão se confirmou. Em 1973, uma nova disputa entre as duas equipes teria um desfecho diferente:
“Estávamos perdendo de 2 a 0 no primeiro tempo, tivemos um pênalti contra nós no segundo e o Capim defendeu, viramos o jogo e ficou 3 a 2, e nunca mais perdemos para a Usina”.
Segundo Vardo, a partir desse episódio o Manchester começou a despontar como uma das melhores escolinhas de futebol do interior de São Paulo. O Manchester foi campeão na categoria Dente de Leite durante 14 anos, de 1977 a 1991. “De centenas de partidas que jogávamos, perdemos apenas uma; éramos um time de referência. Nosso grande desafio não era ganhar, era formar cidadãos”, lembra Vardo.
Dotado de uma memória que impressiona, Vardo se recorda de datas e resultados de jogos do Manchester. E são tantas histórias que ele já prepara um livro onde pretende deixar registrada sua importante colaboração na formação de atletas na cidade. Uma dessas histórias revela que seu grau de envolvimento com o futebol o levou a assumir riscos que hoje são lembrados com bom humor. Em 1980, a equipe teria de enfrentar o time de Paraguaçu Paulista pelo campeonato estadual, em Marília. “O Mário Teixeira falou que arrumaria uma perua pra levar o Manchester, mas a perua não chegava; coloquei os 11 garotos no meu Chevette e fomos para Marília rezando pra que a polícia não parasse a gente. Os maiores ficaram”. O jogo acabou empatado em 2 a 2. Na volta, durante uma parada num posto de gasolina, um funcionário da agência do Branco do Brasil de Ourinhos reconheceu Vardo, e sensibilizado com a situação acabou trazendo parte da equipe no seu carro.
Em 2000, Vardo coordenou a escolinha de futebol do projeto Semear, mantido pela Prefeitura de Ourinhos, através da Secretaria Municipal de Assistência Social, que atendia cerca de 350 jovens na Vila São Luiz e no Jardim Itamaraty.
Vardo foi responsável pela formação de atletas que atuaram em grandes times do futebol brasileiro. Um desses atletas, o ex-goleiro Newton Batista Ângelo, conta que começou jogando no Falcões, time formado no pátio da ferrovia: “Nós tínhamos uma camisa feita com pano de saco tingido de verde, e cada um fazia a sua”. O talento de Newton, que já jogava no gol, chamou a atenção do treinador do Manchester, que o levou para jogar na equipe: “Nós andávamos naquele carro velho do Vardo, onde cabia 10, 12 moleques. Ele foi o precursor disso tudo. Eu tive pessoas importantes na minha trajetória, e o Valdomiro foi uma delas”.
Além da paixão pelo futebol, Newton herdou do antigo treinador a vocação para a formação de atletas. Depois de atuar por 17 anos como jogador profissional, com passagens por clubes como o Matsubara, Dom Bosco, Francana, Taubaté, Velo Clube, Rio Branco de Americana e União de Suzano, Newton voltou para Ourinhos para iniciar uma nova fase na sua relação com o futebol. Ele reconhece alguns tropeços na administração da carreira, mas o destino fez com que ele nunca se distanciasse do futebol.
“Essa escola nasceu da necessidade. Joguei em bons clubes, mas não tive a orientação que os atletas têm hoje. Ganhei muito dinheiro, mas gastei demais. Não me arrependo, se hoje eu consigo ensinar é porque passei por muitas situações difíceis”, conta Newton, que há mais de 20 anos está à frente da Escolinha de Futebol Chuteirinha de Ouro. O nome da escola foi sugerido pela esposa Silmara, a quem ele atribui a nova orientação que deu à sua vida. Newton não se esquece de citar outras pessoas que o ajudaram, como Carlos Cury, cujo filho, Pedro Henrique, foi seu primeiro aluno.
A Chuteirinha de Ouro atende gratuitamente 236 alunos, em dois núcleos: no Seminário Josefino e no campo do Cacto Clube, na Vila Brasil, próximo ao Rio Pardo. “Para cada faixa etária tem um fundamento. Os menores, de 5 a 8 anos, brincam bastante e ensinamos respiração e exercícios. Para turma de 14, 15 anos a gente já ensina funções. Alguns tem mais aptidão, possuem o dom para o esporte”, explica Newton. O projeto, mantido pelo empresário Francisco Eroides Quagliato Filho, o Kiko, fornece cestas básicas, uniforme, patrocina viagens e refeições, além de atender crianças com necessidades especiais.
Embora Newton diga que a prioridade do projeto é o social, dali já saíram atletas que hoje estão jogando em outros países. É o caso de Wellington Luiz de Souza e Paulo Otávio; o primeiro joga hoje no futebol japonês, e o segundo atua na segunda divisão de futebol da Alemanha. A obstinação do seu primeiro incentivador também o contagiou: “Sábado fomos jogar em Ribeirão do Sul, levamos 120 num ônibus. É a escola do Vardo!”, diz sorrindo.
Para produzir este texto, a equipe do Jornal Biz pesquisou em: “Cinco Séculos de Brasil – Imagens e Visões” (1998), de José Arbex Jr. e Maria Helena Valente Senise, “Traços a esmo” (1921), crônica de Graciliano Ramos, “No tempo da bola”, coluna publicada por José Luiz Martins no jornal Negocião, Site de Carlos Lopes Baia https://www.facebook.com/ProfessorBaia, jornais “A Voz do Povo”, “Diário da Sorocabana” e “O Progresso de Ourinhos”, disponíveis em http://www.tertuliana.com.br/docs/acervo. A equipe entrevistou Valdomiro Sebastião Ferreira e Newton Batista Ângelo.
Imagens: Casinha da Memória, Bernardo Fellipe Seixas, Toninho, Belarmino, Acervo de José Carlos Neves Lopes.
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