(Em memória de Nelson, Paquita e Celso)
- Ele recebeu um dinheiro do pai quando casou. Estava sem emprego e resolveu montar uma fábrica de gelo. Era pequena, um barracão de madeira no lugarejo com ruas de terra. A menina arregalou os olhos e disparou:
– Mãe, porque eles não faziam gelo no freezer da geladeira?
Antes de responder, enquanto engolia mais um pedaço do bolo de chocolate, a mãe lembrou que contavam que o avô ficava muito nervoso quando a energia caía – naquele tempo isso acontecia quase todas as tardes – e as máquinas paravam de funcionar. Paula já estava acostumada com os questionamentos da filha sempre que começava a contar as histórias da família. Luana ouvia com atenção e se admirava com as aquelas maluquices narradas pela mãe.
– Como assim, fábrica de gelo?
A mãe explicou que naquela época as pessoas não tinham geladeira em casa e quando precisavam conservar um alimento ou gelar uma bebida compravam barras de gelo.
– Meus avós vieram para o Brasil ainda pequenos, quando uma grande epidemia fez todo mundo se isolar em casa, como acontece agora. A gripe espanhola matou muita gente. Deita aí que eu vou contar como foi quando eles se conheceram.
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Paula e Luana moram num pequeno apartamento e o constante barulho das buzinas dos carros só dá uma trégua quando anoitece. Paula é professora e com a paralisação do trabalho, tem aproveitado o tempo com a filha para lembrar as histórias que ouviu quando criança.
– Tá escutando esse barulho, Luana? Meus avós moravam numa cidade pequena, onde não havia carros, as ruas eram de terra e as carroças puxadas por cavalos.
Luana lembrou que viu a imagem de uma carroça quando fez uma pesquisa sobre transportes para um trabalho da escola. A mãe explicou que no tempo dos avós até o gelo era transportado nelas.
– Não acredito, gelo em carroças?
Paula se divertia com a reação de incredulidade da menina.
– Sim, as barras ou cubos de gelo ficavam envoltos em serragem, para não derreter.
A mãe admirava as sobrancelhas marcadas da filha, pensando em quanto a descendência espanhola se mantinha através das gerações.
– Eles vieram ainda crianças de navio com toda a família, a viagem durou cerca de 20 dias.
Paula falou como o destino das pessoas parece estar traçado, como se em algum lugar estivesse escrito que duas pessoas iriam se encontrar de qualquer maneira. Luana não entendeu muito bem o que a mãe estava dizendo sobre o destino. Enquanto disfarçava para pegar um pedacinho de bolo que caiu em seu pijama, a menina pediu para que a mãe falasse daquela viagem. Paula explicou que os dois vieram no mesmo navio, mas não se conheciam:
– Meu avô viajou na primeira classe, e minha avó na terceira. Anos depois eles riram muito quando descobriram que podiam ter se olhado pela primeira vez ainda muito pequenos.
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Luana prestava atenção nos detalhes que a mãe contava sobre o casamento dos avós, do vestido de noiva bordado em rendas e pequenas pérolas, dos longos cabelos num penteado preso com a grinalda.
– Ela estava feliz e o noivo orgulhoso, e dançaram na festa.
A menina tinha uma boneca vestida de noiva, e adorava brincar de casamento, juntando convidados e oferecendo doces.
– Você falou do casamento, mas nem contou como eles se conheceram.
Paula sorriu, gostava de conversar com a filha e ficaram ainda mais próximas com o isolamento social provocado pela pandemia de coronavírus. Algumas noites Luana dormia com ela na cama, era quando as conversas se estendiam um pouco mais.
– Tem razão Luana, não expliquei isso. Depois de um tempo no Brasil as famílias foram morar na mesma cidade no interior. Os dois se conheceram quando iam ajudar as mães a buscar água no poço.
A menina foi logo interrompendo o relato da mãe:
– Água no poço? Não tinha água na torneira, não?
Paula falou sobre a vida difícil naquela época, de como as mulheres trabalhavam duro e, além de tirar água do poço, lavavam e passavam as roupas com ferro em brasa, enceravam a casa, costuravam e cuidavam dos filhos.
– Credo… coitada da sua avó, lamentou a menina.
– Você me ajudou a fazer esse bolo, não é mesmo? Pois naquele tempo eles usavam fogão a lenha, o que deixava as panelas todas pretas.
Luana olhou para os brinquedos espalhados no chão do quarto e ficou imaginando como aquelas crianças brincavam:
– Acho que eles não tinham celular com joguinhos, não é?
Paula falou que as crianças brincavam no mato, nadavam no rio, faziam seus próprios brinquedos com latas velhas e pedaços de pau.
– Mãe, se não existia celular nem computador, como eles conversavam com os parentes que moravam longe?
Paula se levantou, foi até o guarda-roupas e tirou do fundo de uma gaveta uma caixa cheia de papéis amarelados. Ela pegou um dos envelopes e mostrou a Luana:
– Eles escreviam cartas que eram enviadas pelo correio e demoravam muitos dias para chegar ao destino. Para piorar, o posto do correio ficava em outra cidade.
A menina pegou um dos envelopes, observou a letra tremida, o selo, os carimbos e uma abertura do lado direito.
– E essa carta mãe, o que diz?
A mãe desdobrou o papel com cuidado. Era de parentes dos avós que haviam ficado na Espanha. Queriam saber como estava a vida por aqui e perguntavam sobre a fábrica de gelo do avô.
– Que bom, você ia mesmo me falar da fábrica de gelo.
O avô espanhol de Paula havia montado a fábrica de gelo quando sua avó estava grávida do primeiro filho:
– Imagine o quanto foi difícil. O dinheiro era curto, e existia o fantasma das geladeiras, assombrando.
Paula sorriu quando percebeu os olhos assustados de Luana. – Fantasma é modo de dizer. E a mãe explicou que naquele período as geladeiras começaram a ser fabricadas no Brasil, e ficava cada vez mais fácil ter uma em casa.
– Se todo mundo poderia ter uma geladeira, a única saída seria fechar a fábrica de gelo.
A mãe explicou que foi exatamente isso que acabou acontecendo. A fabriqueta continuou funcionando por mais algum tempo, fornecendo gelo para quem não tinha dinheiro para comprar uma geladeira, e entregavam as barras em festas e casamentos. Enquanto isso a barriga da avó ia crescendo. Longe da família, com pouca informação, e tendo que realizar as tarefas domésticas, ela pouco sabia sobre o parto e como cuidar de um bebê.
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Paula contou que o rádio era a companhia que amenizava a solidão da avó enquanto o marido ajudava a fabricar e distribuir as barras de gelo.
– Não era igual hoje. O rádio era um móvel grande, que decorava a copa ou a sala.
Enquanto preparava a comida, a avó gostava de ouvir as novelas que eram transmitidas pela única rádio da cidade.
– Novela no rádio?, estranhou Luana.
– É sim Luana, ainda não havia televisão, e as novelas eram ouvidas no rádio.
Paula explicou que havia outro programa que avó acompanhava.
– O programa era apresentado por um médico que explicava como ter uma boa gravidez e como cuidar de um recém-nascido.
Pelo olhar de Luana, a mãe percebeu que já vinha mais uma pergunta, e se antecipou:
– Não havia médico naquela pequena vila. Quando chegava a hora, a parteira ia até as casas ajudar no nascimento.
Paula explicou que as parteiras não eram médicas, mas como sabiam realizar o parto, eram pessoas conhecidas no lugar onde moravam.
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Um dia, enquanto depenava uma galinha para fazer no almoço, a avó ouviu no rádio que um circo iria se instalar na cidade. Havia muitos circos naqueles tempos e eles ficavam vários dias em cada local. A lona grande cheia de luzinhas e aquelas pessoas diferentes mudavam a rotina e todos se preparavam para ver pelo menos uma das sessões.
– Minha avó gostava de circo, onde os atores apresentavam os dramas, umas histórias tristes…
E Luana não se conteve:
– Ué, mas circo não é alegre e engraçado?
Paula respondeu que sim, existiam palhaços, trapezistas, mágicos e malabaristas, mas a avó gostava era dessas pequenas novelas que não eram tão alegres. Eram histórias parecidas com aquelas que ela ouvia no rádio. Os circos eram como uma família. Quando chegavam à cidade, todos ajudavam a levantar a lona, a montar o picadeiro e a bilheteria, e nos intervalos os artistas se revezavam vendendo pipocas, pirulito e algodão doce. Mas a vó contava que daquele circo em especial ela sempre se lembrava.
– Aiai, e o que é que aquele circo tinha de diferente? perguntou Luana.
– O circo não tinha nada de diferente, mas acontece que a mulher do palhaço também estava grávida, como a minha avó. E você não vai acreditar no que aconteceu.
– Então fala logo, mãe. Tô curiosa…
Paula contou que a avó e a mulher do palhaço começaram a sentir as dores do parto ao mesmo tempo. Ou melhor, na mesma noite, enquanto acontecia uma das sessões do circo. O palhaço ficou muito nervoso e mal conseguiu participar da apresentação. No final do espetáculo, ele foi avisado que havia uma parteira na vila.
– Meu avô tinha saído primeiro para avisar a parteira. Enquanto ele aguardava a mulher, chegou o palhaço, muito agitado, ainda com a roupa e a maquiagem usada no seu número.
– Nossa, que confusão, disse a menina.
– Pois é. Primeiro a parteira teve que acalmar os dois. Depois foi separar as coisas que usava em seu trabalho, e começou a correria entre acudir a avó em casa e a mulher do palhaço em uma tenda no circo.
Paula contou detalhes das bacias de água esperta, das toalhas branquinhas feitas de pano de saco, dos cueiros, dos muitos cigarros fumados pelo avô nervoso, da emoção da mãe vendo o filho pela primeira vez. Falou também da agonia dos artistas do circo, ansiosos do lado de fora da tenda, aguardando o primeiro choro, e da alegria quando isso aconteceu.
– No final tudo ficou bem, disse Paula. As crianças nasceram fortes e saudáveis, dois meninos. Primeiro o bebê da minha avó e em seguida o da mulher do palhaço.
– Mãe, e a fábrica de gelo?
– Bom, a fábrica de gelo durou mais algum tempo, mas meu avô acabou fechando e comprando uma geladeira, e depois foi trabalhar vendendo máquinas de costura. Agora chega de histórias e de bolo de chocolate. Vá escovar os dentes antes de dormir.
Enquanto ajeitava a cama da filha, Paula ouviu lá do banheiro a voz de Luana, ainda com a boca cheia de creme dental:
– Mãe, será que o filho do palhaço também virou artista de circo?
[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].
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