De trem.
Porque é de trem que
se vai e se vem.
Sempre de trem.
Luciano Correia da Silva
Quem passou pela experiência de viajar de trem até São Paulo certamente carrega muitas lembranças dessa aventura que poderia durar oito ou dez horas. A despeito do conforto e da rapidez dos dias atuais, as memórias que se mantém do tempo em que os trens de passageiros cruzavam a cidade em direção à capital revelam situações de uma época em que a obsessão com a pressa ainda não determinava o comportamento das pessoas. Bastava soar o apito do chefe da estação para que o barulho forte dos vagões engatados desse início à aventura.
De um patrimônio ferroviário que se diluiu com o tempo restam resquícios, como os trilhos que ainda atravessam a cidade e algumas edificações que remetem ao auge do meio de transporte de pessoas e cargas que predominou até meados do século 20, quando então o país optou pelas rodovias.
O conjunto de casas que forma o Centro de Convivência, em frente ao Lanchódromo, é um exemplo disso. Construídas em 1926, elas serviam de moradia para funcionários da Estrada de Ferro Sorocabana. Perto dali, ainda se encontra o prédio do Museu Municipal que era parte da estrutura da estação ferroviária. Os mais velhos ainda se lembram das charretes estacionadas na rua de paralelepípedos aguardando a chegada dos passageiros.
Mais imponente, a “Casa dos Ingleses”, na Avenida Rodrigues Alves, abrigava funcionários mais graduados de outra estrada de ferro, a São Paulo Paraná. Por sua posição geográfica estratégica, Ourinhos foi um importante ponto de entroncamento ferroviário transpondo o rio Paranapanema em direção aos estados do sul. O termo utilizado para definir aquele conjunto que servia de moradia e de escritórios da administração faz referência aos engenheiros ingleses que estavam à frente da ferrovia.
A chegada da estrada de ferro nesta região está relacionada ao escoamento da produção cafeeira do período. A ideia de construir uma ferrovia na região entre os rios Tietê e Paranapanema, passando pelas cidades de Tietê, Botucatu, São Sebastião do Tijuco Preto (Piraju) e Salto do Dourado (Salto Grande) aparece no relatório de 1882 apresentado aos acionistas da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana.
A ocupação das terras para o cultivo do café nas décadas finais do século 19 e início do século 20 criou as condições para realização da ideia. Em 1908, segundo outro relatório da Sorocabana, entraram em funcionamento na linha tronco as estações de Batista Botelho, Bernardino de Campos e Ilha Grande (Ipaussu). No mesmo relatório, também são relacionadas na linha tronco as estações de Chavantes e Ourinhos.
A isso se juntaram os interesses do coronel Jacintho Ferreira de Sá, chefe político da região, que usou de sua influência para que a ferrovia adentrasse suas terras. A primeira estação foi criada em 1908, dando impulso a um pequeno núcleo de moradores que já vinha se formando, constituído agora por trabalhadores da ferrovia e por aqueles se agregaram, estimulados pelas possibilidades de negócios.
A movimentação de pessoas e mercadorias na estação indica o desenvolvimento daquele núcleo inicial. Entre 1909, início da operação da estação, e 1918, foram despachados a partir de Ourinhos aproximadamente 8.872.696 quilos de café. As informações disponíveis sobre o período indicam ainda que em 1910 embarcaram na estação de Ourinhos 9.175 pessoas; em 1912 já eram 19.783 passageiros. Enquanto a Sorocabana estendia sua linha em direção a Presidente Prudente e Presidente Epitácio, na divisa com o Estado do Mato Grosso do Sul, outro importante acontecimento relacionado ao transporte ferroviário estava sendo gestado na fronteira entre os Estados de São Paulo e Paraná.
Embora a Companhia Estrada de Ferro São Paulo Paraná (1928) esteja associada aos ingleses no caso de Ourinhos, a sua origem se deve às iniciativas de fazendeiros do norte do Paraná. No início do século 20, municípios como Jacarezinho (1900) e Cambará (1904), se juntaram a outros que já existiam, como Santo Antônio da Platina (1886) e Ribeirão Claro (1890), e passaram a utilizar a Sorocabana para transportar a produção de café e madeira. O primeiro trecho entre a estação da Estrada de Ferro Sorocabana e Leoflora (PR) ficou pronto em junho de 1923; em julho de 1924 os trilhos chegaram a Cambará.
A nova ferrovia modificou a condição de Ourinhos que se transformou em local de intercâmbio entre duas ferrovias.
O movimento na Estação da Sorocabana aumentou e adequações foram necessárias. Ao custo de 166.255$064, foi inaugurada em 1926 uma nova estação, uma casa para o Chefe de Linha e um conjunto de casas para a Turma 8, onde hoje é o Centro de Convivência. O investimento era justificado, pois em 1920 haviam embarcado em Ourinhos 20.774 pessoas e 1.601.733 Kg de café. Em 1925, pouco mais de um ano depois do início das operações da São Paulo-Paraná, foram embarcados em Ourinhos 6.643.289 Kg de café e 46.761 passageiros.
Muitas cidades brasileiras tiveram seu surgimento determinado pela chegada da estrada de ferro. Trabalhadores da ferrovia, oficinas e estações transformaram pequenos agrupamentos humanos em núcleos urbanos impulsionados pelo dinamismo trazido pelos trilhos. Do isolamento das pequenas vilas surgiram cidades estruturadas para atender aos interesses de um contingente cada vez maior de pessoas. Esse processo de urbanização e evolução da cidade envolveu pessoas que foram se integrando à nova paisagem, e ao lado dos trabalhadores da ferrovia surgiram também pequenos comerciantes e funcionários públicos.
No auge do transporte ferroviário, a atividade envolvia uma quantidade enorme de trabalhadores, criando laços familiares e de amizade, estimulando a sociabilidade e convivência. Em Ourinhos, a Vila Margarida foi o espaço ocupado primordialmente pelas famílias dos ferroviários. Muitos filhos e netos ainda moram no bairro, e suas inúmeras casas de madeira expressam um pouco desse tempo.
Clubes, cinema, conjuntos musicais e times de futebol surgiram por inspiração de profissionais da ferrovia, e o cotidiano do local sempre foi impregnado pela atividade da estrada de ferro.
Filho de ferroviário e morador da Vila Margarida em sua infância e juventude, o professor e cronista Euclides Rossignoli descreve em detalhes as viagens daquele tempo: “No Trem de Luxo da Estrada de Ferro Sorocabana havia vagões de primeira e segunda classe, vagão-restaurante e vagões-dormitório, além dos chamados carros Pullman, com poltronas espaçosas e reclináveis”. Pelos corredores, entre uma cidade e outra, surgia um funcionário oferecendo sanduíches, biscoitos de polvilho e refrigerantes aos passageiros.
É nas histórias dos antigos trabalhadores que vai se revelando a realidade, o dia a dia do trabalho na estrada de ferro. “Entrei como mecânico de máquina”, conta Domingos Ângelo, que ingressou na ferrovia em 1949. Como prestava socorro às locomotivas quebradas ou acidentadas, não era raro que tivesse de passar vários dias fora de casa. Ele se recorda de um acidente de grandes proporções na Serra Morena, no Paraná: “O trem fez uma manobra na serra e na batida perdeu o engate, descendo a 200 Km/h. Na curva, dezessete tanques explodiram, queimando um alqueire de mata virgem”. Além do perigo das onças e outros animais que surgiam naquele ambiente, não havia previsão de retorno para casa. “Ficamos dezenove dias para terminar o socorro”, lembra.
O ambiente nas estradas de ferro era predominantemente masculino. Porém, as mulheres também ocuparam espaços nas ferrovias brasileiras. Em Ourinhos, Angelina Rossignoli exerceu funções importantes nos escritórios da ferrovia. Aos 21 anos, era responsável pela frequência dos funcionários do Setor de Tração da empresa, que reunia cerca de oitenta funcionários. Mais tarde, trabalhou na Seção de Distribuição de Vagões, e sua função era organizar a distribuição das cargas transportadas pelos trens.
“Faltava muito vagão, era muita mercadoria: café, milho, madeira… quem chegasse primeiro pegava o vagão”, lembra. Mesmo com a intensa pressão do trabalho, já que a produção agrícola era grande e o trem era a única opção de transporte, Angelina é categórica: “Foi o melhor período da minha vida”.
De principal meio de transporte no século passado, justificando o surgimento de cidades e impulsionando a economia do país, a ferrovia hoje permanece hoje apenas como uma vaga lembrança, um conjunto de ruínas ou mesmo como empecilho ao desenvolvimento.
Em Ourinhos, a retirada dos trilhos do centro da cidade é assunto discutido já há algum tempo. Na contramão do que ocorreu em outros países, o Brasil investiu no transporte rodoviário em detrimento de sua malha ferroviária, opção que se mostrou equivocada quando se leva em consideração a ideia de que a integração entre diferentes meios é fundamental para o desenvolvimento de um país, tanto no transporte de passageiros como na logística do transporte de cargas.
A série 100 Anos Ourinhos tem o apoio da Fundação Educacional Miguel Mofarrej, mantenedora das Faculdades Integradas de Ourinhos e do Colégio Santo Antonio Objetivo.
Para produzir este texto a equipe do Jornal Biz pesquisou em “Ourinhos: Histórias e Memórias”, de Euclides Rossignoli (2011); “Jornal Balaio Cultural” (edições 04, 06 e 09/2011 e 04/2012) e Projeto Arquivo de Lembranças (AABiP) disponíveis em http://tertuliana.com.br/docs/acervo; “As estradas de ferro do Paraná 1880-1940”, de Lando Rogério Kroertz, tese de doutorado FFLCH/USP (1985) e http://www.estacoesferroviarias.com.br/o/ourinhos.htm.
Relatório da Directoria da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana apresentado aos Senhores Accionistas na Assembléia Geral celebrada em (11/12/1882); Relatório apresentado a Directoria da Sorocabana Railway Company pelo seu Superintendente (1908); Relatório apresentado a Directoria da Sorocabana Railway Company pelo seu Superintendente Geral (1910); Relatório apresentado a Directoria da Sorocabana Railway Company pelo seu Superintendente Geral (1911); Relatório apresentado a Directoria da Sorocabana Railway Company pelo seu Director Geral (1912); Relatórios da Estrada de Ferro Sorocabana (1919/1920/1925/1926); Relatório referente ao anno 1927 apresentado ao Exmo. Snr. Dr. José Oliveira de Barros Secretário da Viação e Obras Públicas pelo Engenheiro Gaspar Ricardo Junior Director da Estrada de Ferro Sorocabana; Relatório referente ao anno 1928 apresentado ao Exmo. Snr. Dr. José Oliveira de Barros Secretário da Viação e Obras Públicas pelo Engenheiro Gaspar Ricardo Junior Director da Estrada de Ferro Sorocabana e Relatório referente ao anno 1930 apresentado ao Exmo. Snr. Secretário da Viação e Obras Públicas pelo da Estrada de Ferro Sorocabana.
Imagens: Francisco de Almeida Lopes, Museu Municipal de Ourinhos, Bernardo Fellipe Seixas, Luiz Carlos Seixas.
Clique aqui e veja as outras reportagens da série 100 Anos Ourinhos
ESTEJA SEMPRE BEM INFORMADO! Envie uma mensagem do seu WhatsApp para (14)99888-6911, com nome+bairro+cidade e receba em primeira mão as notícias de Ourinhos e região.
CURTA O JORNAL BIZ NO FACEBOOK
Instagram @JornalBiz
Twitter @jornal_biz