O oratório

O avião pousou no aeroporto da Pampulha com meia hora de atraso. O voo de Campinas a Belo Horizonte levou pouco mais de uma hora e chegaria a Ouro Preto no começo da noite. Retirou a pequena mala da esteira e ligou para Isabel. Como sempre, havia esquecido a escova de dentes. Não levara muita bagagem, em dois dias estaria de volta. Enquanto pingava as três gotinhas de adoçante no café, observou um casal que comentava sobre as medidas que seriam tomadas para evitar a propagação do vírus. Os dois aparentavam ter mais de setenta anos, ela talvez um pouco menos. Pegou o carro alugado e partiu.

O percurso de pouco mais de cem quilômetros foi cansativo. Já era conhecido na pousada. Hospedou-se ali outras vezes, ainda no período em que iniciava sua pesquisa. Era janeiro e a chuva havia provocado um pequeno deslizamento em um dos acessos. Fez boa viagem, professor? Sérgio brincou um pouco com a cachorrinha poodle que acompanhava o tempo todo o dono da pousada. Acho que ela se lembrou do senhor. Depois do banho ligou para padre Alberto e combinou que se encontrariam pela manhã. Não tinha fome. Conferiu as mensagens e leu algumas notícias sobre a provável epidemia. Alguns países já se adiantavam, outros já haviam registrado mortes. Ligou novamente para a mulher e dormiu.

___continua após publicidade___

Anuncie no Biz (14)99888-6911

Tomou o café da manhã em uma mesa separada dos outros hóspedes. A janela aberta mostrava a calçada molhada. Pensou que não tinha um guarda-chuva, pediria emprestado para o dono da pousada. Subiu a ladeira devagar, em direção à Igreja São Francisco de Assis, desviando das poças e cuidando para não escorregar nas pedras da rua, lisas com a chuva fina e intermitente. Em poucos minutos avistou as torres arredondadas e um pouco recuadas em relação à fachada, destacando a portada esculpida em pedra-sabão. O tempo tem cheiro, pensou enquanto entrava devagar na igreja, atento aos detalhes das imagens, hipnotizado pela riqueza do altar e pela beleza da pintura no teto. Sempre a emoção da primeira vez.

Padre Alberto o esperava na sacristia, para onde se encaminhou sem pressa. O padre vestia batina escura, contrastando com os cabelos e a pele muito brancos. Comentou sobre uma epidemia que estava acontecendo pelo mundo, notícia dos telejornais, e sobre o cansaço do domingo com muitos batizados. Soube do seu filho, há coisas difíceis de compreender. Entraram no assunto que havia levado o professor a Ouro Preto: o oratório. O padre possuía uma coleção interessante de obras de arte. Muitas peças eram ofertadas por famílias em retribuição a um conselho ou alento em momentos difíceis, outras garimpadas em antiquários, catalogadas e reunidas em um cômodo abarrotado de sua casa. Para o padre, o valor das obras se sobrepunha à duvidosa procedência delas. O professor falou do oratório, e combinaram um café naquela tarde na casa do padre. Além de examinar a nova peça, poderia rever a coleção do amigo.

___continua após publicidade___

Olhando com atenção onde pisava, chegou à praça Tiradentes. Da figura imponente no alto daqueles quase quinze metros ele só conseguia enxergar a corda que parecia balançar com um vento inexistente. Sentiu um aperto na garganta e se acomodou num dos degraus na base do monumento. Já não chovia e o sol agora tomava conta da praça. Aproveitou o alvoroço causado por um grupo de turistas e saiu em direção ao restaurante Porão das Artes.

Paulo havia completado dezenove anos em novembro. Em dezembro viajou com a namorada para o Recife. Sempre dizia que sonhava em morar no Nordeste. Após a faculdade de artes poderia montar seu ateliê em uma daquelas cidades cheias de sol, e passaria a vida pintando seus quadros. Pouco antes do Natal, o silêncio prolongado no quarto que sempre cheirava tinta anunciava a tragédia. O casal ainda não havia arrumado o quarto do filho quando Sérgio anunciou que iria a Ouro Preto. Explicou que precisava atender ao pedido do padre para analisar um oratório que parecia ser obra do Aleijadinho. Isabel sabia que a viagem era apenas um pretexto, era a forma escolhida por ele para tentar suportar aquilo tudo.

Ainda descia pelos trinta degraus da escada do restaurante quando começou a sentir um cheiro agradável. Logo que o viu chegando, Amélia lhe deu um abraço. Alta, com longos cabelos loiros e sotaque carioca, Amélia morava há quinze anos na cidade. Resolveu investir no restaurante e nas artes após a morte do marido no Rio de Janeiro. Além dos habituais brincos, colares e pulseiras cheios de pedras, ela trazia agora uma máscara cheia de bordados. Tem acompanhado as notícias da epidemia? Sérgio observou rapidamente os quadros nas paredes, e sentaram numa das mesas. Padre Alberto falou que você viria, mas se recusou a entrar em detalhes. Ela não sabia nada sobre a tal peça, ainda não tinha visto. Enquanto almoçavam, Amélia lembrou quando ele, Isabel e Paulo estiveram lá pela última vez. O menino circulava entre as mesas e já se encantava com as pinturas. Almoçaram e Sérgio voltou à pousada. Ainda tinha um tempo para descansar, antes do encontro com o padre.

Se a autoria da peça pudesse se confirmar como sendo de Aleijadinho, seu trabalho teria repercussão, seria um importante achado. A pesquisa já ia adiantada, mas desde que ficou sabendo que padre Alberto estava com o oratório, aguardava ansioso pelo encontro e só depois poderia concluir o estudo. Pensava nisso deitado em uma poltrona em meio às plantas da varanda na pousada. Lembrou de Amélia, e da forma como ela havia guardado na lembrança a ocasião em que toda a família esteve no restaurante, quando Paulo ainda era criança; e da frase de padre Alberto: “Há coisas difíceis de compreender”. Talvez devesse ter ficado ao lado da mulher, deixar essa visita ao padre para outra ocasião. O olhar interrogativo e angustiado deixavam a convivência mais dolorida. Ele não tinha respostas. Ninguém tinha. Nada explicava. Um menino jovem, bem-criado, o futuro pela frente. Quando voltasse da viagem, ia convencer a mulher a desmontarem o quarto do filho. Precisavam seguir, e isso significava separar, jogar fora ou guardar as coisas dele, e fariam isso juntos.

___continua após publicidade___

JornalBiz.com (14)99888-6911

Padre Alberto sabia que o professor queria ver o oratório, mas sentia especial prazer em mostrar seu acervo, contar da trajetória das peças até vir parar em suas mãos, nome do autor, técnica e data provável. O religioso ficava envaidecido quando falava com alguém que entendia do assunto. Vendia algumas peças, e justificava dizendo que o dinheiro era para as obras da igreja. Dizem que a epidemia vai se espalhar pelo país. Sem dar muita atenção ao que o padre dizia, Paulo notou que entre as esculturas em madeira e pedra sabão, havia algumas telas no chão, apoiadas na parede. Parou para observar, a lembrança do filho o acompanhando.

Diferente dos grandes oratórios expostos no Museu do Pilar, aquele não passava de sessenta centímetros.  A imagem de Cristo com cabelos cacheados, boca entreaberta, olhos amendoados, nariz estreito e longo, além dos dedos médio e anular unidos, quase que confirmavam sua autoria. Um padre contou que um contato seu no exterior havia sinalizado que a peça estaria em poder de uma colecionadora alemã. Algumas negociações e a ajuda de um patrocinador anônimo garantiram o caminho de volta do oratório.

Por um momento, Sérgio observou a imagem como se buscasse naquela obra algum sentido para tudo que havia acontecido. Nunca foi uma pessoa religiosa, mas naquele instante o olhar cravado na imagem não possuía o rigor do pesquisador que havia dedicado parte de sua vida ao estudo da obra do artista. Era como se a sua dor pessoal se expressasse nas chagas em tom avermelhado, a dor do sentimento de culpa, da impotência, da incapacidade de perceber o sofrimento do próprio filho. Encontrou o olhar do padre, que havia se calado percebendo a dificuldade do amigo. Paulo lembrou de Isabel enquanto caminhava e pensou que aquilo tudo era desnecessário, a recusa em mexer nas coisas do filho, a viagem a Ouro Preto, o abandono da mulher. Tudo aquilo que havia motivado seu trabalho e sua dedicação, naquele momento representava apenas a recusa em aceitar a realidade. Despediu-se do padre e saiu apressado.

___continua após publicidade___

No caminho de volta passou ainda pelo restaurante de Amélia, agora para comprar uma das pinturas que Paulo tanto gostara na ocasião em que viajaram juntos. A tela trazia a cena de um pequeno e solitário barco de pescadores distante no mar. Ficou a imaginar que poderia ser uma das praias daquele nordeste que Paulo tanto sonhava, onde gostaria de viver todos os dias que ainda viriam. Ligou para Isabel, estaria de volta no dia seguinte.

Na chegada a Campinas foi surpreendido pelo aparato que já se formava para conter o avanço da epidemia. A cidade começava a parar e poucas pessoas circulavam pelas ruas. No elevador percebeu os olhos assustados dos moradores. Só agora percebia a gravidade da situação. No apartamento encontrou Isabel assistindo ao noticiário. Abraçou a mulher e ficaram calados. A voz do apresentador anunciava as primeiras mortes no país. Juntos penduraram o quadro na parede da sala, ao lado de algumas telas de Paulo. Sentaram no sofá, desligaram a tevê, deram-se as mãos e no silêncio daquele isolamento pensaram como a vida é breve, imediata.

[Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência].

ESTEJA SEMPRE BEM INFORMADO! Envie “Quero notícias do Jornal Biz + (seu nome)” do seu WhatsApp para (14)99888-6911 e receba em primeira mão as notícias de Ourinhos e região.

CURTA O JORNAL BIZ NO FACEBOOK
Instagram @JornalBiz
Twitter @jornal_biz