Era o tempo dos passeios na Praça Mello Peixoto, das saias plissadas e da brilhantina nos cabelos. O cinema era a diversão, e local onde muitos romances tiveram início. Eram comuns os bailes de debutantes, espetáculos de circo e retretas com a Banda Municipal. A provinciana Ourinhos dos anos 1950 ainda tinha ruas de terra onde transitavam poucos veículos, mas eram muitas as charretes e cavaleiros. A Maria Fumaça testemunhava encontros e partidas, e a convivência social e familiar tinha regras rígidas.
Ourinhos possuía 21.085 habitantes em 1950, e esmagadora maioria católica, um dado recorrente em praticamente todos os municípios brasileiros naquele período. No censo de 1950, eram 18.658 os ourinhenses que afirmaram ser essa a sua religião. Num país onde o acesso à educação ainda caminhava a passos lentos, o levantamento apontou outro número expressivo: a cidade contava com 6.465 pessoas analfabetas, cerca de 30% da população.
O início da década de 1950 foi período de expansão dos templos católicos em Ourinhos. Os padres “josefinos” (Congregação Oblatos de São José) estavam se instalando na cidade, e o prédio do Seminário e a igreja Nossa Senhora de Guadalupe foram inaugurados em 15 de abril de 1950, na Vila Perino. Também estavam sendo construídos o novo prédio da Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus – hoje Catedral – e a Capela da Sagrada Família, na Vila Margarida. Nesse ambiente católico, os padres eram figuras muito importantes na cidade, participavam ativamente da vida social e exerciam grande influência nas decisões políticas.
Em seu livro “História e devoção – A construção social do culto a Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado de Ourinhos”, o professor Maurício Aquino publicou entrevista realizada com Rafael Conte, que no ano de 1954 era telegrafista da Estrada de Ferro Sorocabana. Rafael conta que eram corriqueiros os acidentes envolvendo trens e pedestres, ciclistas ou carroceiros nas passagens de nível da ferrovia.
Um desses acidentes acabou motivando a construção de uma devoção religiosa na cidade. No dia 31 de julho de 1954 um trem misto, que transportava passageiros e combustíveis, se chocou com um caminhão tanque, numa área próxima a um grande depósito de combustível, onde hoje se localiza a Vila Moraes. Na edição de 3 de agosto daquele ano, o jornal Correio de Notícias, trouxe uma reportagem sobre o acidente: “Com a violência do impacto o carro-tanque explodiu, provocando violento incêndio que atingiu a locomotiva Diesel, a qual imediatamente teve a sua carga de combustível também tomada pelas chamas que a envolveram por completo. Localisados (sic) bem próximos do sinistro estavam os grandes depósitos de gasolina das citadas companhias, que somente não foram atingidas por uma questão de pura sorte, e que si tal acontecesse então hoje estaríamos a lamentar um desastre de prejuízos materiais e de vida, que ficaria como marco fúnebre na vida de Ourinhos”.
Pelo que contam os registros da época, os moradores das imediações foram tomados pelo pânico, abandonando suas casas. Ainda não havia Corpo de Bombeiros na cidade, e o combate às chamas recebeu o auxílio dos funcionários da Estrada de Ferro Sorocabana e da Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro).
Quando chegaram os integrantes do Corpo de Bombeiros da capital, o fogo já estava controlado. “Por verdadeiro milagre o fogo não se propagou aos carros de passageiros que vinham ligados a composição mixta (sic). Achavam-se separados do local onde se iniciou o fogo apenas pelo carro de bagagem que também foi totalmente tomado pelas chamas e destruído toda a sua carga”, descreve a reportagem.
O acidente causou a morte de três pessoas: o maquinista José Stefani, o foguista Vergílio Pinto Amaral e o motorista do caminhão Palmito Túlio. A proporção do acidente chamou a atenção da imprensa estadual, e o fato foi noticiado pelo jornal O Estado de São Paulo e pelo antigo Repórter Esso, (na época, referências da grande imprensa nacional).
Pessoas que presenciaram o incêndio contam que no momento do acidente havia um vento fraco, e na direção contrária aos depósitos de combustível, e isso foi considerado fundamental para que a tragédia não atingisse proporções muito maiores. Além desse fato considerado milagre por muita gente, outro acontecimento marcou a tragédia. No meio de um vagão incendiado, “entre as cinzas das bagagens”, os bombeiros localizaram uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, inteiramente intacta.
Lourival Argenta, em entrevista publicada no livro do professor Maurício Aquino, conta:
“Passaram a apagar o fogo em um vagão que estava com uma mudança. Jogaram água, virou um forno e foram tirando as coisas que estavam dentro. Devia ser umas 9 da noite quando um bombeiro puxou com um gancho uma caixa que estava pegando fogo. Eu estava ali, bem perto dele. A caixa tinha muitos panos, de repente o bombeiro abaixou-se e pegou a imagem de Nossa Senhora”.
Dentro de um contexto religioso mais amplo, é interessante perceber que o achado da imagem de Nossa Senhora Aparecida no vagão incendiado em Ourinhos acontece no mesmo ano em que o Brasil comemorava o cinquentenário da coroação da imagem da Santa, e o fato era lembrado nas festividades de 400 anos de São Paulo, naquele longínquo 1954. “A imagem de Nossa Senhora Aparecida, encontrada intacta em um vagão queimado, era em si mesma prenhe de significados na medida em que ativava nos corações e nas mentes das pessoas a imagem da Santa Maria encontrada nas águas do Paraíba por pescadores em situação de risco”, comenta Maurício de Aquino.
O bombeiro que encontrou a imagem entregou-a ao prefeito Domingos Camerlingo Caló, e depois de alguns dias foi enviada para a Igreja Matriz, e colocada em um dos altares laterais.
Apesar da repercussão do acidente e da comoção provocada pelo encontro da imagem, depois de algum tempo o assunto foi sendo esquecido. Um dos motivos pode ter sido o empenho dos padres “josefinos” em promover a devoção a Nossa Senhora de Guadalupe, que movimentou a comunidade católica naquele período. Outro fator que pode ser apontado para justificar o “esfriamento” da devoção à imagem encontrada no vagão foi que a Igreja Católica não reconheceu o fato como prodígio sobrenatural. Talvez isso explique o motivo pelo qual o padre Eduardo Murante tenha colocado a imagem em um canto de um dos altares laterais da igreja matriz. E foi assim, em meio ao descaso, que a imagem desapareceu no final dos anos 1960.
Treze anos depois, em 1973, o Monsenhor Oswaldo Violante, motivado pelo que diziam insistentemente alguns fiéis, iniciou campanha pela rádio e jornais em busca do paradeiro da imagem. Foi revelado então que o padre Arnaldo Beltrami, que havia assumido a paróquia do Senhor Bom Jesus em 1966, havia oferecido a imagem a Irene Nicolau, em retribuição a um auxílio financeiro dado para a igreja. A devota levou a imagem para a vizinha cidade de Ipaussu, onde morava.
A busca pela imagem perdida motivou intensa campanha, que vinha de encontro ao objetivo do Monsenhor Violante de divulgar ações da Igreja e conseguir novos fiéis, em uma época em que a população católica começava a dar sinais de declínio. Desta forma, a mesma igreja que havia negado o milagre em 1954 acolhia agora a sugestão popular, mas sob o controle do clero. A construção da devoção à Santa do vagão queimado teve seu início com a ação decisiva do Monsenhor Violante, respaldada pelos interesses da Igreja Católica naquele momento.
Em 19 de agosto de 1973 o Diário da Sorocabana trazia a seguinte manchete: “Ourinhenses querem saber onde está a imagem salva do incêndio de 1954”. Ainda havia dúvidas sobre o caráter milagroso da imagem da santa, e o mesmo jornal, em 23 de agosto de 1973 trouxe depoimento de uma testemunha do incêndio: “O que aconteceu foi coincidência, mais nada. O fogo apenas não chegou onde se encontrava a imagem, e por este motivo não a atingiu. O vagão onde ela se encontrava só queimou até a metade”.
A imagem foi devolvida quando dona Irene Nicolau teve conhecimento da campanha promovida para saber do seu paradeiro. Ela não sabia que a imagem que conservou sobre a cômoda em seu quarto por tantos anos era a mesma achada em meio aos escombros do vagão queimado, em 1954.
Ciente da comoção que o retorno da imagem poderia provocar entre os fiéis, o Monsenhor Violante organizou uma procissão de carros de Ipaussu até Ourinhos, que aconteceu no dia 3 de agosto de 1974, reunindo cerca de mil veículos. “Enfim a pequena imagem foi solenemente entronizada na igreja matriz”, escreveu o professor Maurício Aquino.
Logo após o retorno da imagem, Monsenhor Violante iniciou esforços para a construção de um santuário em homenagem à santa, pesquisando e divulgando fontes históricas sobre o acidente e realizando campanhas para arrecadação de recursos. Segundo Lourival Argenta, “o Monsenhor conclamava a participação do povo e lembrava que a ereção do santuário era uma promessa contraída com Nossa Senhora por conta da proteção que oferecera à cidade de Ourinhos”. A “retribuição ao milagre” aconteceria alguns anos depois.
Em 15 de outubro de 1978 o Santuário de Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado foi inaugurado no Jardim Matilde. No mês de julho os devotos realizam festa para relembrar o que chamam de milagre de Nossa Senhora Aparecida, que em 1954 teria impedido que um incêndio de grandes proporções atingisse a cidade.
Se para os católicos o que aconteceu naquele ano foi um milagre, para outros não passou de um simples acaso. Mas é inegável que a estratégica iniciativa de estimular essa devoção contribuiu para alimentar a religiosidade e reforçar o vínculo dos fiéis com a igreja católica.
Para produzir este texto a equipe do Jornal Biz pesquisou em: “História e devoção: A construção social do culto à Nossa Senhora Aparecida do Vagão queimado de Ourinhos – SP (1954-2004), de Maurício de Aquino, arquivos do Jornal O Estado de São Paulo, disponíveis em https://acervo.estadao.com.br/ e Diário da Sorocabana (http://www.tertuliana.com.br/docs/acervo).
Imagens: Museu Municipal de Ourinhos, acervo de Francisco Neves Lopes, Bernardo Fellipe Seixas.
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