Expectativa de que país possa assistir a 100 mil mortos em apenas um mês se deve à falta de isolamento, quantidade insuficiente de vacinas e apagão do governo federal.
Março foi o mês com maior mortalidade da pandemia de covid-19 no Brasil, mas o cenário pode ficar ainda pior. O alerta vem de autoridades sanitárias diante de um avanço perigoso e infelizmente persistente da doença no país: vacinação lenta, lockdowns de fachada e falta de coordenação nacional para uniformizar iniciativas que poderiam otimizar o atendimento médico.
“No mês passado, tivemos aproximadamente 66 mil vidas perdidas. Quase diariamente ouvíamos recordes de número de casos e óbitos para a doença. Ouvimos falar em falta de vagas no serviço de saúde em vários locais do Brasil. E mesmo com os números horríveis a que nós estamos assistindo hoje, acredito que ainda não chegamos ao fundo do poço, que a situação pode ser pior. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Washington mostrou que, agora, no mês de abril, podemos ter 100 mil mortes. Então é preciso que exista conscientização das pessoas, que o problema é grave, preocupante, é muito triste. É necessário que, quem puder, fique em casa” disse à RFI o médico Leonardo Weissmann, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Um dado compilado de hospitais no país chamou a atenção nos últimos dias porque soa quase como uma sentença morte: 80% dos pacientes intubados morrem no Brasil. Em um país de governo negacionista onde nem sequer existe campanha oficial com orientações sobre o que fazer diante dos sintomas, especialistas dizem que vários fatores contribuem para números tão ruins: da procura tardia por atendimento até a ausência de protocolos, condutas básicas e gerais voltadas as unidades médicas.
“Até o momento não tivemos uma liderança, uma comunicação coordenada entre as esferas de governo federal, estadual e municipal. Com isso, cada um acaba fazendo o que bem entende, muitas vezes acaba disseminando informações falsas, tratamento com medicamentos que não têm eficácia. É necessário que tenhamos um Ministério da Saúde que tome atitudes, desenvolva protocolos pautados na saúde, que, se necessário, peça ajuda a sociedades médicas. Se não tiver esse apoio do Ministério da Saúde, vai ser muito difícil que consigamos controlar essa situação e diminuir o número de mortes no país”, sentenciou Weissmann.
Muita política em torno da doença
Integrante do comitê gestor do HRAN, hospital público referência contra a Covid-19 em Brasília, o médico Ricardo Monteiro dá um exemplo de como esse novo vírus exige ações rápidas e coordenadas. A central que regula leitos de UTI funcionou bem para várias doenças, mas muitas vezes é um entrave para o cenário atual. “O paciente de manhã recebe a pulseira verde, de menor gravidade, e depois passa para amarelo. À tarde ele já está laranja. E à noite ele virou vermelho. Se a gente não tiver agilidade para poder mobilizar esse paciente, ele vai evoluir com certeza para um quadro grave. Então, a burocracia atrapalha muito. Ou seja, o complexo regulador para esses leitos tem feito com que os pacientes demorem a receber assistência. Se a gente pudesse criar uma forma de ter uma maior agilidade de mobilidade desses pacientes, seria muito positivo”.
Em entrevista à RFI, Monteiro lamentou que drogas sem comprovação tenham ganhado status de panaceia, sendo que outros procedimentos é que têm salvado vidas. “O suporte de oxigênio precoce para uma pessoa que necessita, o suporte de corticoide e o suporte de anticoagulação é o que está salvando vidas hoje no Brasil e no mundo. Isso está sendo comprovado, cada dia mais forte, é uma janela que tem mudado a história natural da doença no sentido de tentar controlar o vírus, bem como a vacina. É muito importante a gente não politizar a doença, mas ela está muito politizada. Isso atrapalha demais. Atrapalha na administração dos recursos, atrapalha nos investimentos, atrapalha na gestão dos leitos, na gestão dos hospitais, na gestão dos insumos, e assim por diante”, diz.
No HRAN em Brasília, a equipe de Monteiro conseguiu reverter a situação de muitos pacientes ao destinar aos anestesistas, experientes no tema, a tarefa de intubar os pacientes, algo que a maioria das unidades brasileiras dificilmente poderia fazer pela falta de pessoal. “Os anestesistas ficam de prontidão, em cinco minutos da solicitação de intubação eles estão ali, já no procedimento.”
Monteiro disse que embora o coronavírus esteja bem mais espalhado, atingindo cada vez mais pessoas mais jovens e sem comorbidade, a população brasileira parece não estar vivendo o epicentro de uma pandemia. “No ano passado, quando viram que a doença estava chegando muito próximo, as pessoas, por temor, por medo, ficavam em casa. Hoje em dia você não consegue, mesmo com todas as medidas de lockdown, frear a circulação.”
Pressão política
Aliados de Bolsonaro que estão com mesa farta de emendas, às vezes endurecem o discurso ao cobrar ações e falar de CPI, enquanto o presidente brasileiro faz sua parte na cena ora apelando a seus fiéis seguidores ora tentando mostrar menos resistência à vacina. A oposição, por sua vez, usa as lacunas do governo para criticar o presidente.
“Bolsonaro, desde o começo da pandemia, fez uma opção: utilizar todos os instrumentos que ele tem como presidente da República para criar obstáculos em qualquer tentativa de controle da pandemia. E um dos instrumentos fundamentais que ele utilizou foi a intervenção militar que ele fez no Ministério da Saúde ao longo desses meses. Ele fez com que o Ministério da Saúde deixasse de ter qualquer papel decisivo no controle da pandemia. O Ministério da Saúde não fez campanhas de orientação, não se posicionou sobre a necessidade de fazer lockdown nas regiões que estavam em pré-colapso do sistema de saúde, não coordenou a compra de medicamentos e insumos”, afirmou à RFI o ex-ministro da Saúde e integrante da Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre Covid, Alexandre Padilha (PT/SP).
Já o deputado Aliel Machado (PSB), que preside a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, ainda tem esperança no novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, mas também é crítico à postura do governo até aqui. “Desde o início, o governo cometeu erros graves na condução dessa pandemia, começando pelo negacionismo. Mas agora, com o número de mortes, problemas na distribuição de vacinas, não tem outra alternativa a não ser ouvir a ciência. E continua uma guerra de narrativa, o presidente achando uma coisa, o ministro achando outra. Esperamos que o Brasil ganhe com o novo ministro, que em alguns momentos já se mostra mais favorável a medidas acertadas.”
Na quarta, o Supremo Tribunal Federal irá decidir se, no pior momento da pandemia, estados e municípios podem barrar cultos e missas em centros religiosos. Indicado por Bolsonaro para a corte, o ministro Nunes Marques liberou os espaços ao analisar um caso. Gilmar Mendes, ao deliberar sobre outra ação, manteve fechados os templos como determina o governo paulista. O plenário, que tende a seguir Mendes, resolverá a questão.
Conteúdo produzido por Raquel Miura para a RFI Brasília
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