Lauro Migliari – o prefeito ourinhense cassado pela ditadura

Carreata da vitória de Lauro na avenida Altino Arantes. Ao fundo o edifício Brasul em construção.

Embora a história seja uma narrativa que recupera fatos do passado, muitos episódios importantes são subtraídos por conveniência ou simples descaso. Ao contrário do que se possa imaginar, a omissão não destitui o valor de determinado fato, e pode indicar sua real importância para a compreensão de um período. Neste caso, a ausência pode se tornar reveladora.

Uma dessas lacunas está relacionada a um obscuro episódio que há quarenta e nove anos redefiniu os rumos da política em Ourinhos: a cassação do mandato do prefeito Lauro Migliari, em 1969. Alguns testemunharam, outros ouviram falar, mas pouco se escreveu sobre os motivos que levaram ao afastamento de um prefeito eleito.




Um dos sete filhos de uma tradicional família de imigrantes italianos, Lauro Migliari nasceu em Ourinhos no dia 30 de junho de 1929. Da infância vivida na Avenida Jacinto Sá ele guarda boas recordações: “A gente brincava de pega-pega, jogava futebol porque não passava carro. Tinha um gramado em frente ao cemitério e fazíamos nosso campo de futebol, as nossas brincadeiras”. Lauro se refere ao antigo cemitério, que existia na área onde depois foi instalada a Cadeia Pública e hoje é o Centro de Ressocialização. Ao lado dos colegas, Lauro atravessava a linha do trem para estudar no grupo escolar da Rua Paraná.

Praça Mello Peixoto, década de 1940. A família de Lauro Migliari foi uma das primeiras a chegar a Ourinhos.

Aos treze anos foi estudar em um colégio de Campinas e cursou contabilidade. Mais tarde formou-se em Direito em Curitiba. Os irmãos cuidavam da firma criada pelo pai: “A princípio se fabricava carroças e carretões de boi, que era o que tinha na época. Aqueles carretões grandes. Depois meu pai instalou a serraria aqui em Ourinhos e foi crescendo”, lembra Lauro. Quando retornou a Ourinhos, pretendia exercer a advocacia, mas acabou assumindo as Indústrias Migliari.

24 de agosto de 1939, avenida Jacinto Sá, em frente à Indústria. Os Migliari estão à esquerda na foto.

O gosto pela política surgiu em 1954 com seu envolvimento na campanha de Jânio Quadros a governador de São Paulo. Nas eleições de 1958 se elegeu vereador pelo Partido Democrata Cristão – PDC, e foi o terceiro candidato mais votado.

Comitê “Jânio Quadros” em Ourinhos.

“A Câmara tinha onze vereadores. Eu fui presidente da Câmara em 1959, e em 1960 fui reeleito.”, explica. Se hoje as excessivas vantagens financeiras dos políticos são alvo de críticas, ser vereador naquela época exigia mais dedicação e compromisso. A Câmara Municipal ficava na Rua São Paulo e a realidade era bem diferente:

Não ganhávamos nada, e tínhamos apenas três funcionários. Não tinha nem geladeira, quem quisesse fazer alguma coisa, fazia por conta própria”, conta Lauro.

Como presidente da Câmara Municipal, Lauro concede o título de Cidadão Ourinhense ao deputado Cunha Bueno.




A falta de salário não impedia os debates acalorados, e muitas vezes era preciso conter os mais exaltados. Uma dessas sessões tumultuadas aconteceu quando foi votado um requerimento que propunha uma “moção de aplauso” para Nelson Carneiro, político que tomou a frente da luta pela aprovação do divórcio no Brasil. Com o empate, coube a Lauro o voto de minerva: “Como presidente da Câmara, desempatei a favor do requerimento”. A reação dos setores mais conservadores da cidade, principalmente de representantes da igreja católica, foi fulminante: Os padres caíram na minha cabeça. A mensagem no telegrama assinado pelo clero, recebido após a votação, já sinalizava os obstáculos que iria enfrentar pela frente: Voto de minerva, voto contra o matrimônio.

Ainda durante esse mandato, outra votação marcaria sua carreira política. Um requerimento apresentado pelo vereador Álvaro Ribeiro de Moraes, conhecido como Vico e assumidamente comunista, propunha a aprovação de um manifesto a favor do povo cubano, exaltando sua reação à tentativa frustrada de invasão da ilha em 1961. Os revolucionários cubanos haviam tomado o poder em 1959 sob o comando de Fidel Castro, e a invasão patrocinada pelos Estados Unidos foi uma tentativa de derrubar o governo comunista que se instalou em Cuba a poucos quilômetros da costa americana.

“Nós estávamos em onze vereadores e eu joguei para o plenário. Cinco votaram favoráveis e cinco votaram contra. Sobrou pra quem? Eu votei favorável, votei mesmo. Porque eu achei que estava certo. O país foi invadido por mercenários que foram rechaçados, e dei o voto favorável”.

Lauro não imaginava que alguns anos depois a coragem de se posicionar sobre temas delicados para época lhe causaria tantos transtornos.




Em outra sessão, Benedito Pimentel, que era suplente na época, entrou com outro requerimento desaprovando a moção aos cubanos. O requerimento foi colocado em discussão e, além de Pimentel, falaram também os vereadores Vico Moraes e José Maria Paschoalick. “Perguntei se mais alguém queria falar, como não tinha ninguém, decidi pelo arquivamento do projeto. Os padres estavam sentados na minha frente e todos os católicos apostólicos romanos também. A hora que eu falei para arquivar o requerimento, aí eu levei uma vaia”, lembra Lauro com bom humor.

Lauro Migliari atribui ao padre josefino Duílio Liburdi a campanha de difamação que sofreu por seus posicionamentos na Câmara de Vereadores: “Enquanto eu era presidente da Câmara ele mandava recados pra mim. Eu tinha uma empregada lá em casa, a Maria, ela era muito frequentadora da igreja, então ele mandava recadinho pra mim e eu devolvia”. Segundo Lauro, o padre o acusava, inclusive durante as missas, de ser comunista: “Ele dizia que eu ia pro inferno”. O católico Lauro Migliari não foi para o inferno, mas enfrentou os ataques de uma igreja que sempre exerceu seu poder para influenciar decisões políticas.

Mesmo sendo católico praticante, Lauro sofreu consequências do conservadorismo e poder religioso da cidade. A foto é da Fapi de 1969.

Sem conseguir se reeleger vereador, Lauro voltou a administrar a empresa. Enquanto isso, o país passava por um conturbado momento político. Após a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, o vice João Goulart conseguiu assumir a presidência sofrendo grandes pressões. No final de março de 1964, com o pretexto de conter uma “ameaça comunista”, um golpe militar depôs o presidente, dando início a uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos, com a conivência de setores do empresariado brasileiro e do clero católico mais conservador.

Publicidade da candidatura de Lauro Migliari, jornal Tempo de Avanço, campanha eleitoral de 1968.

Incentivado por amigos, Lauro decide se candidatar a prefeito nas eleições de 1968. Adversário do grupo político ligado ao então prefeito Domingos Camerlingo Caló, que defendia a candidatura do engenheiro Aldo Matachana Tomé, Lauro Migliari aceitou o desafio. A ditadura havia instituído o bipartidarismo, e os grupos políticos se dividiam entre a Arena, partido que apoiava o governo, e o MDB, que reunia os opositores ao regime. O MDB decidiu não lançar candidato a prefeito, e optou por conquistar vagas na Câmara Municipal. Naquele período também foi instituída a “sublegenda”, que na prática significava que cada partido poderia lançar até três candidatos. Lauro disputou a eleição também pela Arena, e seu concorrente foi Aldo Matachana.




É o próprio Lauro quem conta como foi o clima da campanha: “O MDB ia lançar candidato, mas depois resolveram me apoiar, porque a candidatura pegou fogo”. Embora o termo marqueteiro ainda não existisse no meio político, não faltou criatividade para animar a campanha: “O Mário Cury, que era o nosso propagandista, soltou: ‘Lauro é fogo, Lauro vem aí’. Fizeram umas caixinhas de fósforos e soltaram por Ourinhos inteiro. E soltaram milhares de caixas de fósforo. E a coisa pegou”.

O jornal Tempo de Avanço de 13 de novembro de 1968 publicou as propostas dos candidatos a prefeito.

Durante a campanha os jornais da cidade publicaram as propostas de governo dos dois candidatos. Uma nota publicada na edição de 3 de novembro de 1968 do jornal Diário da Sorocabana, informa sobre a organização de uma “mesa redonda” com os dois candidatos, que seria transmitida pela Rádio Clube, com mediação do jornalista Salvador Fernandes.

Nota do jornal Diário da Sorocabana anunciou um debate entre os candidatos que seria transmitido pela Rádio Clube, com mediação do jornalista Salvador Fernandes.

As eleições aconteceram no dia 15 de novembro de 1968 e Lauro Migliari venceu com uma diferença de mais de 3 mil votos sobre Aldo Matachana Tomé. O jornal Diário da Sorocabana tratou o resultado como uma grande derrota do grupo liderado por  Camerlingo, que apoiava a candidatura de Aldo.

A edição de 17 de novembro de 1968 do jornal Tempo de Avanço publicou o resultado da apuração dos votos que deram a vitória ao candidato Lauro Migliari.




Carreata da vitória: no veículo o vice-prefeito eleito Mithuo Minami, o ex-prefeito Antonio Luis Ferreira, Lauro Migliari e o panfleteiro-chefe Zico.
Discurso da vitória: rua 9 de Julho com Rua Paraná, onde hoje funciona uma loja de cosméticos.




Final da carreata da vitória, chegada ao comitê político.

Na edição de 17 de novembro, em matéria sobre a apuração dos votos, o jornal destacou: As primeiras urnas abertas já antecipavam a fragorosa derrota que seria imposta ao sr. Camerlingo Caló. A matéria salientava ainda a nova constituição da Câmara de Vereadores, favorável ao prefeito eleito, já que os vereadores eleitos pelo MDB dariam, segundo o jornal, sustentação política a Lauro.

AI-5 é notícia de capa do Diário da Sorocabana.

Mas a política nacional tomaria rumos inesperados a partir do mês seguinte. O clima de tensão, com a realização de greves operárias, manifestações estudantis e o surgimento dos movimentos de guerrilha, levou o governo do general Artur da Costa e Silva a tomar medidas que se tornaram o símbolo da repressão imposta pelo regime militar.

No dia 13 de dezembro de 1968, data da comemoração do cinqüentenário de Ourinhos, o governo federal anunciou o Ato Institucional nº 5, que determinou o recesso do congresso nacional, limitou as liberdades individuais, cassou mandatos e prendeu políticos e líderes opositores. Começavam os “anos de chumbo” do governo militar, e a tortura dos opositores passou a ser uma prática comum nos porões da ditadura.




Os efeitos do AI-5 foram sentidos de imediato em Ourinhos. Vários políticos foram presos, outros fugiram. Lauro Migliari sabia que haveria uma resistência por parte daqueles que haviam sido derrotados nas eleições municipais e que viam com bons olhos as medidas adotadas pela ditadura: “Eu assumi em fevereiro de 1969, e já diziam que eu não ia tomar posse. E eu assumi, tomei posse. Depois diziam que eu não ia ser diplomado. Fui diplomado. Depois diziam que eu não ficava três meses, fiquei três meses. Não fica seis, no sexto eu cai. Ele acredita que os grupos que eram contrários a sua eleição se aproveitaram da situação e o clima de caça às bruxas foi o combustível que impulsionou o seu afastamento. Embora reconheça a possibilidade de interferência do ex-prefeito Camerlingo no seu afastamento, Lauro isenta Aldo Matachana de qualquer responsabilidade no episódio.

Um fato inusitado, que já sinalizava o que viria pela frente, aconteceu em abril daquele ano. Policiais da cidade prenderam duas freiras do Asilo São Vicente de Paula. As religiosas pertenciam a Ordem dos Anciãos Desamparados, e o caso estampou as páginas dos jornais.

Capa do jornal Diário da Sorocabana de 4 de abril de 1968 com informações sobre a prisão das freiras do Asilo São Vicente de Paula, atual Lar Santa Teresa Jornet.

Além de causar mal estar na cidade, o episódio provocou a reação do governador Roberto de Abreu Sodré que exigiu uma apuração. Em matéria publicada no Diário da Sorocabana, a madre Francisca Peres teria afirmado: Temos uma casa em Cuba, lá Fidel Castro nos respeitou. Nunca pudemos imaginar que passaríamos por tamanha humilhação em Ourinhos. Segundo a matéria, o jornal Última Hora teria publicado que a ordem para prender as freiras partiu do Juiz da Comarca.




Lauro estava ciente de que havia uma articulação para afastar um prefeito da região. Seus posicionamentos durante o período em que presidiu a Câmara garantiam sua fama de “comunista”. Lauro nunca foi comunista, era católico como muitos que o atacavam, mas sua campanha recebeu apoio de integrantes do MDB que simpatizavam com as ideias comunistas.

Confira abaixo alguns registros feitos durante os seis meses em que Lauro foi prefeito de Ourinhos

Transferência do cargo de prefeito: Tibério Bastos Sobrinho, Domingos Camerlingo Caló e Lauro Migliari.
Inauguração do Ginásio da Vila Odilon, 1969.




Inauguração do Posto de Assistência à Infância Vila Margarida, em 1969

Em uma reunião política realizada na cidade de Piraju em 28 de junho de 1969, para recepcionar o então Ministro Mário Andreazza, cogitou-se que um prefeito da região seria cassado. “Eu saí de lá cabisbaixo. Numa segunda-feira, dia 2 de julho, eu e meu chefe de gabinete ouvíamos a Hora do Brasil que anunciaria os nomes de alguns políticos cassados”, lembra Lauro. Num determinado momento anunciaram um nome: “Lauro Milheri”. O chefe de gabinete ainda falou: “Não é você!”. No sexto mês do seu mandato, o prefeito olhou para seu assessor e respondeu: “Não, é o Papa!”.

Existe uma lacuna na imprensa local, que não noticiou a cassação do prefeito: “Acho que foi pela minha honra. É por isso que não deram destaque pra isso. Quem levou para mim o telegrama que eu fui cassado foi o agente do correio daqui. Eu ainda estava na prefeitura, estava despachando, já cassado mesmo”.




Lauro Migliari ainda quis garantir que seu vice, Mithuo Minami, assumisse o posto, já que havia interesse de grupos locais em derrubá-lo também. Diante da situação, Lauro tomou o telefone e ligou imediatamente para o seu vice: Eu fui cassado, você precisa vir aqui tomar posse. Do outro lado da linha respondeu um Mithuo apavorado: “Lauro, eu estou aqui com dois tenentes do exército, eu estou tremendo. Com o afastamento de Lauro a Câmara Municipal se dividiu, e parte dos vereadores passou a defender a posse de Ibrahim Abujamra, que presidia o legislativo. Mithuo Minami acabou assumindo através de um mandado de segurança.

O afastamento de Lauro Migliari foi tratado com certa omissão pela imprensa da época, e não há registro de manifestações de apoio ao prefeito. A transferência do cargo ao vice Mithuo Minami foi tratada como se houvesse naturalidade num ato de exceção que destituiu do cargo um prefeito eleito com imensa maioria de votos, que não respondia a nenhum tipo de acusação. É o que sugere uma matéria publicada em 6 de julho de 1969 no jornal O Progresso de Ourinhos, com o seguinte título: “Permanece inalterada a ordem em Ourinhos”.

O jornal O Progresso de Ourinhos de 6 de julho de 1969 destacou a controvérsia em torno de quem deveria assumir o cargo de prefeito após o afastamento de Lauro Migliari.

Após a cassação de seu mandato, Lauro Migliari voltou a administrar os negócios da família e se afastou da política. Mais tarde, nas eleições de 1988, vinte anos após o episódio da cassação, ele se candidatou novamente a prefeito, mas foi derrotado pelo médico Clóvis Chiaradia. Integrou a equipe de Gabinete nas gestões dos prefeitos Claury Santos Alves da Silva (1993-1996) e Claudemir Ozório Alves da Silva (2001-2004).

Comício de Lauro na campanha municipal de 1988, quando disputou sua última eleição.

O lamentável episódio da cassação do ex-prefeito Lauro Migliari sempre foi um momento obscuro da história política do município. Porém, a cada dia se revelam fatos que marcaram um infeliz período de intolerância, abusos e perseguições políticas no Brasil.

 Para produzir este texto a equipe do Jornal Biz entrevistou Lauro Migliari, Aldo Matachana Thomé e Antonio Carlos Surumba Nunes. Foram pesquisadas edições dos jornais Tempo de Avanço, O progresso e Diário da Sorocabana, disponíveis em http://www.tertuliana.com.br/docs/acervo

Imagens: Acervo de Lauro Migliari, Francisco de Almeida Lopes, Wilson Monteiro e Museu Municipal de Ourinhos, Blog Memórias Ourinhenses.

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