STF abre caminho para corte de água e energia por atraso, e ignora drama de famílias como a de Bianca, em Ourinhos

À esquerda o ministro André Mendonça, do STF. À direita a fachada da Ourinhos Saneamento. | Imagens: reprodução redes sociais

por Bernardo Fellipe Seixas

Moradora do Conjunto Vandelena recebe conta de mais de R$1.500 da Ourinhos Saneamento, e pode ter água cortada na próxima semana.

Por um fio — ou melhor, por um voto — o Supremo Tribunal Federal está prestes a permitir que empresas de água e energia deixem brasileiros no escuro e na seca por dívidas inferiores a 60 dias. O julgamento, em plenário virtual, trata da constitucionalidade de uma lei do Tocantins que proíbe esse tipo de corte. A norma, aprovada em 2019, pode cair hoje, graças à pressão das gigantes do setor de saneamento.




O relator do caso, ministro André Mendonça — conhecido nacionalmente como “terrivelmente evangélico”, rótulo que lhe foi carimbado pelo próprio padrinho político, o ex-presidente Jair Bolsonaro — decidiu que o estado não tem competência para legislar sobre fornecimento de energia e água. Na visão dele, isso seria responsabilidade da União (no caso da energia) e dos municípios (quando se trata de água). A maioria dos ministros — Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Dias Toffoli — concordou com o relator, o que deixa o placar em cinco a um contra a lei.

Apenas Edson Fachin, como costuma fazer, destoou do coro privatista. Em seu voto, defendeu a autonomia dos estados para proteger consumidores, especialmente nas áreas mais sensíveis dos serviços essenciais. “A legislação local é mais minuciosa, atende às peculiaridades regionais e explicita deveres das empresas com os cidadãos”, argumentou.

Do outro lado da trincheira, a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento sorri de orelha a orelha. Conta com o apoio da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República, que também pediram a anulação da lei tocantinense. Já a Assembleia Legislativa do estado e o governo estadual defenderam a validade da norma, apelando para a jurisprudência que reconhece a proteção ao consumidor como princípio constitucional.

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Da teoria à conta d’água

Mas a guerra jurídica em Brasília tem reflexos diretos no interior do Brasil, como em Ourinhos, onde a vida real cobra com juros a omissão do poder público. Desde que a empresa Ourinhos Saneamento assumiu os serviços de abastecimento e esgoto na cidade, no fim do ano passado, as reclamações se multiplicam como vazamentos em cano podre: contas em duplicidade, valores abusivos, água turva, buracos nas ruas e um atendimento digno de filme de terror.

A moradora Bianca da Silva Santos, do Conjunto Vandelena Moraes Freire, é só um dos rostos por trás da frieza das estatísticas. Sozinha com três filhos pequenos – de 11, 6 e 3 anos – , ela recebeu uma conta de R$ 1.584,59 em abril. E outra, em maio, de R$ 533,50. “Minha conta sempre vinha entre 70 e 100 reais. De repente recebi essa bomba. Trabalho o dia todo, chego em casa quase às 20h. Meus filhos passam o dia na creche e depois com a avó, onde vou buscá-los. É impossível ter gastado tudo isso de água”, diz, com voz embargada.

Segundo Bianca, a empresa esteve na residência, mas negou qualquer vazamento. “Disseram que é pagar ou ficar sem água.” A frase tem a delicadeza de um decreto de despejo. E a crueldade se agrava: o valor cobrado em abril é quase três vezes o aluguel da casa onde Bianca mora. Uma sentença proferida por uma prestadora de serviço que, ao que parece, não responde a ninguém — nem à Câmara de Vereadores, que abriu uma Comissão de Assuntos Relevantes para investigar as denúncias, nem à lógica do consumo humano, que ainda consta na Constituição como direito essencial.

Enquanto outros veículos de imprensa locais preferem o silêncio ou a omissão — embalados por mesadas de patrocínio que escorrem das torneiras da Ourinhos Saneamento — o Jornal Biz segue fazendo o que sempre fez: jornalismo de verdade. Denúncias e críticas à empresa você só vai ler aqui. Porque aqui a água é para todos — e a verdade também.

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Secura institucional

A julgar pelo andar da carruagem no STF, a Constituição está prestes a ganhar mais um furo no balde. A decisão da Corte pode legitimar o corte de água em casos de inadimplência rápida, mesmo diante de abusos como o de Bianca. E não se trata de exceção: relatos semelhantes explodem nas redes sociais, onde ourinhenses indignados compartilham suas contas e seus desabafos.

Se o Supremo confirmar o voto majoritário, abrirá precedente para que outras leis estaduais semelhantes sejam derrubadas. O Brasil da crise hídrica institucional caminha para uma jurisprudência onde a conta pesa, mas a dignidade não vale o litro.

No país onde empresas viram juízes e a água se transforma em produto de luxo, fica a pergunta: a Justiça ainda escorre pelas torneiras, ou já secou de vez?

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