Ourinhos: a memória nas ruas da cidade

Rua 9 de Julho, Ourinhos.

Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba
(A rua, Torquato Neto)

A “praça do jardim”, na vizinha Santa Cruz do Rio Pardo, possui um coreto construído em 1930. Ele continua lá, da mesma forma, preservando a memória e o passado da cidade. Os ourinhenses não tiveram a mesma preocupação, e depois de inúmeras reformas, da antiga Praça Mello Peixoto não restou quase nada.

Praça Mello Peixoto, década de 1940.

A memória de uma cidade se revela também na paisagem urbana, nos vestígios materiais que permanecem no presente. As fachadas das antigas residências ou dos prédios comerciais, as praças públicas e as ruas estão repletas de significados e auxiliam na compreensão das relações sociais e políticas de um lugar. O hábito cultural de nomear ruas e outros espaços públicos é uma forma de registrar no espaço físico das cidades as relações de poder que muitas vezes ultrapassam o simples reconhecimento pessoal.

Com a ânsia de transformação em busca do futuro, pouco restou da antiga Ourinhos e suas construções. Mas a memória ainda manda recado em forma de placas de rua, onde estão gravados nomes de pessoas que tiveram alguma relação com a cidade. Alguns viveram aqui; outros ajudaram a cidade em algum momento, com influência política, atendendo pedidos de recursos ou realização de obras públicas. Alguns nomes foram homenageados pela amizade com políticos. Das mais de duas dezenas de ruas que compõem a região central, nenhuma delas recebeu nome de mulher. Do total de ruas da cidade, elas foram lembradas em menos de 1% das vezes.

O asfalto acaba, mas a rua Padre Rui Cândido continua.

Quem anda pela vila Odilon com certeza conhece a Rua Padre Rui Cândido da Silva, que atravessa praticamente todo o bairro e termina no rio.  Antes de receber o nome do religioso muito estimado pelos moradores do bairro, aquela rua chamava-se Paranapanema, mas alguns a conheciam como “rua da balsa”, numa alusão à balsa que fazia a travessia do rio.

“Era uma estrada boiadeira, naquela época o gado era tocado no chão, não havia transporte em caminhão como é hoje”, conta Carlos Fantinatti, que vive no bairro desde que nasceu, há 73 anos.

Padre Rui,, o segundo da esquerda para a direita.

Padre Rui nasceu no interior de Minas Gerais, e nos dez anos em que atuou como pároco da Igreja Santo Antônio, na vila Odilon, trabalhou para o crescimento de sua igreja. Era comum que visitasse moradores em suas casas para prestar assistência religiosa ou aconselhamentos, mas também intermediou pedidos da população para que o bairro recebesse melhorias. Padre Rui morreu em junho de 1973.




Ainda que as transformações urbanas sejam inevitáveis, muitos lugares permanecem impregnados de sua própria história, e com as ruas da cidade não é diferente. A Rua Cardoso Ribeiro, que começa no centro da cidade e termina na rodovia Raposo Tavares, hoje tem como característica a falta de árvores plantadas em todo o seu percurso. A via, que é formada por estabelecimentos comerciais, teve o nome dado pelo coronel Jacintho Ferreira e Sá, para homenagear o amigo que havia sido juiz na vizinha Santa Cruz do Rio Pardo. A história é interessante: formado em direito pela USP em 1896, Francisco Cardoso Ribeiro poucos anos depois foi nomeado promotor público e logo em seguida promovido a juiz, quando assumiu o cargo em Santa Cruz do Rio Pardo.

Acontece que naquela época o ‘chefe’ político da região era o coronel Tonico Lista, conhecido como audacioso e violento. O novo juiz achou que poderia agir com independência, e exigia o cumprimento das leis. Foi o que bastou para atrair a ira de Tonico Lista, e Cardoso Ribeiro foi ameaçado de morte.  Contam que o juiz fugiu para Bernardino de Campos escondido na carroça do padeiro João Dalmatti, e de lá pegou o trem para São Paulo.

Cardoso Ribeiro foi Ministro do STF.

Cardoso Ribeiro ocupou cargos importantes (foi Secretário de Estado e ministro do Supremo Tribunal Federal), mas guardou ódio e desejo de vingança pelo que havia passado. Cardoso Ribeiro é suspeito de haver planejado o assassinato de Tonico Lista, morto a tiros dez anos depois de sua fuga na carroça do padeiro. Acontece que o coronel Jacintho Ferreira e Sá também não era lá muito amigo de Tonico Lista, que dominou a vizinha Santa Cruz por mais de 20 anos, e deve ter gostado do desfecho da história, tanto que homenageou o amigo como nome de rua. Cardoso Ribeiro suicidou-se em maio de 1932.

O encontro da rua Cardoso Ribeiro com a avenida Altino Arantes, no centro de Ourinhos.

As ruas Altino Arantes e Cardoso Ribeiro se cruzam na região central da cidade, mas esses dois paulistas também se encontraram em outras situações durante a vida. Estudaram na mesma época na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e ocuparam cargos políticos relevantes. Também compartilhavam assuntos comuns, e Altino Arantes conseguiu a absolvição de Tonico Lista, em um processo em que ele era acusado de assassinato, em 1921.




Avenida Altino Arantes

Político militante, Altino Arantes foi deputado federal pelo Partido Republicano Paulista (PRP) de 1906 a 1911 e secretário interino da Fazenda e Agricultura durante o governo Rodrigues Alves (1912-1915). Não é por acaso que uma das principais avenidas da cidade carrega o seu nome; durante sua gestão como presidente do Estado de São Paulo (cargo que hoje equivale ao de governador) entre 1916 e 1920, Ourinhos foi emancipada politicamente e se transformou em município.




Ao término do mandato, voltou a ocupar o cargo de deputado federal até a revolução de 1930. Participou ativamente da revolução constitucionalista de 1932, colaborando com o coronel Euclides Figueiredo na preparação do plano da luta armada. Com a derrota do movimento, exilou-se em Lisboa. Foi eleito deputado novamente em 1945, participando dos trabalhos de promulgação da nova constituição. Altino Arantes teve ainda uma intensa atividade como escritor, foi presidente a Academia Paulista de Letras por 14 anos e membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Nota chamava a atenção para os benefícios do prolongamento da avenida Altino Arantes, ainda cercada por pés de café. A Voz do Povo_13_08_1938.

Quando Ourinhos ganhou um novo prédio da estação ferroviária, inaugurado em 1927, o diretor geral da Estrada de Ferro Sorocabana era o engenheiro Arlindo Gomes Ribeiro da Luz. Conhecido por ser um dos principais administradores de ferrovias do Brasil, Arlindo Luz foi diretor de outras importantes estradas de ferro do país, e seu compromisso com a criação da nova estação lhe rendeu muitas homenagens na cidade. A principal delas resultou de uma iniciativa do então vereador José Felipe do Amaral, que apresentou à Câmara Municipal um projeto que alterava o nome de uma das ruas centrais da cidade. Com isso, a antiga Rua Pará passou a se chamar Arlindo Luz. Em 1926, antes da inauguração da nova estação, Arlindo Luz visitou Ourinhos e recebeu do prefeito José Esteves Mano Filho a solicitação para que construísse um viaduto de acesso entre as duas partes da cidade, divididas pela ferrovia. Arlindo Luz construiu a estação ferroviária, mas o viaduto ficou a cargo de seu sucessor.

A “rua do cemitério”.

Os ourinhenses sabem bem o que significa a expressão “ir para a Gaspar Ricardo”. Os donos de estabelecimentos comerciais da rua que começa na Avenida Jacintho Sá antigamente fechavam as portas e tiravam o chapéu em sinal de respeito cada vez que um enterro passava por ali, em direção ao cemitério. As ruas centrais da cidade receberam nomes de homens que auxiliaram no seu crescimento nas primeiras décadas, trazendo benefícios por ocuparem cargos políticos.

 

Como diretor da Estrada de Ferro Sorocabana o engenheiro Gaspar Ricardo foi responsável pelo viaduto de madeira que ligava a ‘parte alta’ da cidade a avenida Jacintho Sá.

Também foi o caso do engenheiro Gaspar Ricardo Junior, que foi sucessor de Arlindo Luz na Superintendência da Estrada de Ferro Sorocabana. Logo que assumiu, recebeu a solicitação de Ourinhos para que fosse construído um viaduto sobre os trilhos da estada de ferro, criando um acesso entre as ruas Paraná e Alagoas. Publicada na edição de 3 de janeiro de 1932 do jornal A Cidade de Ourinhos, a solicitação salientava a necessidade da obra devido à intensa movimentação dos trens, prejudicando a comunicação entre partes ‘alta’ e ‘baixa’ da cidade: “Essas comunicações se acham frequentemente interrompidas pelos numerosos comboios de carga e por um sem-número de manobras que, dia e noite, realizam no mesmo acanhado pátio das duas estradas de ferro”.

O pontilhão era uma reivindicação da população na época da inauguração da nova estação ferroviária.

Além do prefeito Theodureto Ferreira Gomes, assinam a solicitação inúmeras autoridades políticas, religiosas e representantes do comércio da cidade. A solicitação foi atendida, e foi construído um viaduto de madeira ligando as duas ruas. Como retribuição ao empenho do diretor da Estrada de Ferro Sorocabana, o município aprovou a alteração do nome da Rua Alagoas, que passou a se chamar Gaspar Ricardo. Posteriormente, o engenheiro se tornou professor da Escola Politécnica e foi eleito vereador em São Paulo.




Avenida Jacinto Sá, década de 1940.

A mais antiga das vias ourinhenses é a avenida Jacintho Sá, nome daquele que é considerado o fundador da cidade. Jacintho Ferreira e Sá era mineiro de Diamantina, e veio com os pais e oito irmãos para a região de Ribeirão Preto, em busca de oportunidades. A longa viagem em lombo de burros deixou marcada a memória familiar, conforme contou o filho Jacintinho, em entrevista publicada no livro “Ourinhos, memórias de uma cidade paulista”: “Conta-se que, a certa altura, os caixotes das crianças, não resistindo à corrosão causada pela urina, tiveram seus fundos desprendidos, deixando cair ao solo, junto às patas dos muares, a preciosa carga de crianças”. De Ribeirão Preto resolveram vir até Santa Cruz do Rio Pardo e em 1896 montaram ali uma casa de comércio, a “Casa Três Irmãos”.

Jacinto Sá, o fundador da cidade.

Ambicioso, Jacintho também começou outro negócio: Comprou uma tropa de burros e fazia o transporte de mercadorias que chegavam por trem só até a estação de Cerqueira César. Desta forma foi fazendo amizade com os políticos da época. Não demorou muito a comprar grande quantidade de terras inclusive a área formada pela Fazenda das Furnas. Graças às suas articulações políticas, conseguiu que a estrada de ferro passasse por elas e que aqui fosse instalada uma estação em 1908. No entorno da pequena estação começaram a surgir estabelecimentos de comércio e pensões, um embrião do que seria a cidade de Ourinhos. Jacintho Ferreira e Sá foi prefeito no período de 1923 a 1925. Morreu de tifo, em 1928, com 50 anos. Foi a primeira pessoa a ser enterrada no cemitério da Rua Gaspar Ricardo.




Rua Arlindo Luz, antiga rua Pará

Assim como toda paisagem urbana da cidade, as ruas mais antigas também passaram por transformações. Se num passado mais distante algumas mudaram de nome em função das circunstâncias, em tempos mais recentes as fachadas residenciais é que foram se transformando. Além da ferrovia que continua dividindo a cidade ao meio, caminhar pelas ruas de Ourinhos é perceber como são quase inexistentes os traços de um passado não tão distante.

Para produzir este texto, a equipe do Jornal Biz pesquisou em: “Entre memória e história”, de Pierre Nora; “Sobre a memória das cidades”, de  Maurício de Almeida Abreu, Departamento de Geografia da UFRJ; “Ourinhos, memórias de uma cidade paulista”, de Jefferson Del Rios;  Jornal Debate, edições de 22/02/2018 e 30/10/2016 e Edições do Jornal A voz do Povo, disponíveis em http://www.tertuliana.com.br/docs

Fotos: Museu Municipal, Acervo Francisco de Almeida Lopes, Bernardo Fellipe Seixas, Geni.com

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