Tempo de Avanço – A voz da juventude na imprensa ourinhense

Da esquerda para direita Dirceu, Davi, Roque Rodrigues, José Carlos Bortolato e Antonio Romane. Deitado no banco, José Rodrigues.

O relançamento do livro 1968 – O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura, trinta anos após a primeira edição, não acontece por acaso. Naquele ano, pairava um clima de inquietação e revolta, com questionamentos sobre a política tradicional, a moral e o comportamento. Em diversos países, os jovens saíram às ruas para protestar, desafiando governos e poderes de todos os tipos. Enquanto artistas buscavam expressar essa pulsação em suas obras, outros partiram para ações mais diretas, optando pelo confronto armado.

Ebulição cultural, manifestações, ditadura.

No Brasil vivia-se a ameaça constante da repressão imposta pelos militares, com a conivência de uma elite empresarial e do clero mais conservador, segmentos que apoiaram o golpe de 1964.




Na música, o público se dividia entre as guitarras elétricas e os cabelos compridos dos tropicalistas, e as músicas de protesto que apostavam numa arte “mais engajada”. Na política, a revolução cubana e a figura icônica de Che Guevara inspiravam jovens que optaram pela guerrilha. Para Zuenir, a geração de 1968 se equivocou ao acreditar “que a revolução dependia apenas da vontade, do ideal”. Por outro lado, essa mesma geração impôs transformações culturais na sociedade. “Mudaram as roupas, os cabelos, a maneira de cantar e o autoritarismo na relação com os pais, professores e poder. Movimentos como o feminista, o negro, o homossexual e o ecológico ganharam força nessa época”, lembrou o jornalista em entrevista ao jornal Metrópoles, no início deste ano.

A reação mais radical a essa efervescência viria com a decretação do Ato Institucional nº 5 em 13 de dezembro de 1968, que instituiu a censura, cassou e prendeu parlamentares, extinguiu as liberdades individuais e abriu caminho para a prática da tortura como política de estado. Se a maioria dos órgãos de imprensa sofreu com a censura imposta pelo regime, outros se aproveitaram da situação, como a TV Globo que cumpriu o papel de legitimar as ações de uma ditadura que se estenderia por longos 21 anos.




Mas o que acontecia na ‘pacata e ordeira’ Ourinhos daqueles tempos? O clima de insatisfação de 1968 também contagiou alguns jovens ourinhenses, e foi por meio das artes e da imprensa que eles canalizaram esse desejo de mudança. Muitos desses jovens estudavam ou haviam passado pelo antigo Instituto de Educação Horácio Soares. E foi no início do ano que a cidade viu surgir o jornal Tempo de Avanço, com uma postura diferenciada, inovadora e com abordagens mais críticas.

Na edição de 1º de Maio de 1968, polêmica sobre proibição do uso de mini-saias no Horácio Soares: “…as meninas sacrificadas não trajavam mini-saia extravagantes e sim roupas do dia-a-dia”.

Quem conta um pouco dessa história é o jornalista José Rodrigues, responsável pela criação do jornal: O Tempo de Avanço surgiu como decorrência de meu descontentamento com os jornais da cidade. Comecei fazendo coluna de estudante no Progresso de Ourinhos, quando o professor José Serni – a quem devo muito profissionalmente – escolheu cinco alunos para escrever no jornal: eu, Antônio Romane, José Carlos Bortolato, Laercio Cubas da Silva e outro que não lembro o nome. Eu tinha 15 anos.

Vicente, Marco Antonio, Leandro, Daniel, Antonio Romane e José Carlos Bortoloto.

José Rodrigues trabalhou ainda no Jornal da Divisa, que surgia naquele momento. Mas o desejo de criar seu próprio jornal falou mais alto: “Falei com os professores Carlos Nicolosi e Norival Vieira da Silva e com o Romane, que abriu a firma em seu nome por eu ser menor de idade”. José Rodrigues contava apenas 16 anos, mas apesar da pouca idade tomou a frente do negócio e o Tempo de Avanço acabou se tornando uma realidade.

A segunda edição do Tempo de Avanço, 7 de abril de 1968.

A relação do jornal com o movimento estudantil sempre foi muito próxima. Um fato marcante na época, e que provocou intensas manifestações, foi a morte do estudante Edson Luiz Souto no Rio de Janeiro, com um tiro disparado pela polícia. O episódio estampou a capa do segundo número do jornal: “O país balançou com a morte do Edson Luiz, acendendo o movimento estudantil. Enquanto estudantes, mandamos celebrar uma missa de desagravo e o jornal assumiu seu papel.  A capa da edição nº 2 foi uma das que mais gostei: uma cruz, com o olho em cima do título (Povo rezou na missa….) e na parte baixa da cruz o texto. Em cima, duas frases do Arapuã, humorista da Última Hora, bem sérias e pesadas”, lembrou José Rodrigues. O Tempo de Avanço assumia sua posição, e as edições que se seguiram evidenciaram a sintonia com questões fundamentais naquele momento, principalmente para os mais jovens.




A vontade de mudança fazia com que os jovens se interessassem em participar da política. Nas eleições, cinco estudantes se lançaram candidatos a vereador. Antônio Romane participou da disputa concorrendo pelo MDB, partido que representava uma espécie de oposição consentida pela ditadura, e que por isso abrigava simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro. “O jornal me apoiou, com pequenos anúncios e folhetos. Não havia dinheiro para um apoio que fosse além disso. Eu recebi o apoio do Partido Comunista Brasileiro, ao qual eu me liguei mais tarde”, lembra Romane.

Edição de 13 de Novembro de 1968 mostra os candidatos a vereador pelo MDB de Ourinhos.

Sérgio Nunes Faria fazia parte daquele grupo, atuando principalmente na área teatral. Como diretor do Grupo de Teatro Amador de Ourinhos, o GRUTAO, Sérgio levou aos palcos de Ourinhos e da região textos que se tornaram emblemáticos nos anos 1960. Na edição de oito de setembro, o Tempo de Avanço destacou as premiações do GRUTAO nas eliminatórias do VI Festival de Teatro Amador da Média Sorocabana. Arena Conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com músicas de Edu Lobo, foi escolhido como melhor espetáculo, e Sérgio Nunes conquistou os prêmios de melhor direção, cenografia e figurinos.

Sérgio Nunes, o mais premiado no VI Festival de Teatro Amador da Média Sorocabana.

A cultura sempre ocupou um espaço privilegiado no jornal. Além da publicação de textos de autores como Brecht e Maiakovski, Thiago de Melo e Walt Whitman, era possível ler artigos que analisavam o movimento tropicalista e os festivais da canção, além de matérias que divulgavam a programação do Cineclube da cidade.

Sempre fui curioso, descobri cedo a livraria do Thomé e a biblioteca do doutor João Bento. Trocávamos informações o tempo todo, não só literatura, mas também muita música. Acompanhávamos os festivais de música brasileira e o tropicalismo de perto. Foi na casa dos Rodrigues que primeiro eu vi um disco do Jorge Ben. Eu comprava discos do Chico Buarque e dos Rolling Stones. Certamente, fomos os primeiros da cidade a ouvir o Sargent Peppers, dos Beatles”, recorda Romane, que era responsável pelas matérias de cultura do jornal.

Filmes de Ingmar Bergman, Luchino Visconti e Walter Lima Junior no 1º Festival de Cinema de Ourinhos, 20 de Outubro de 1968.

“…O 1º (e último) Festival de Cinema em nossa cidade fracassou redondamente… Perfeitamente compreensível, você quer se alienar a cada dia mais…”

José Rodrigues reclama do pouco público no 1º Festival de Cinema de Ourinhos, edição de 3 de Novembro de 1968.

O mesmo tom contestador era mantido quando se tratava de assuntos relacionados ao comportamento e à moral tradicional da época. Numa cidade que vivia sob a mão pesada do conservadorismo católico, a publicação de matérias sobre a utilização da pílula anticoncepcional ou da pena de morte certamente causava reações: “Chegamos a chocar um pouco mais pela coragem de assumir posições de vanguarda numa cidade conservadora. O que chocou mesmo foi o Goiabão, meu primeiro jornal, feito no Instituto e que me custou a cassação de meu cargo  no Grêmio e na comissão de formatura da 4ª série. Também fui proibido de trabalhar pela cooperativa dos estudantes dentro da escola”, diz José Rodrigues.




A reação era esperada, afinal o jornal acompanhou de perto episódios como a revolta dos padres da diocese de Botucatu após a nomeação de um bispo conservador, além da prisão das freiras do Asilo São Vicente de Paula que aconteceu naquele ano.

Vicente, Dirceu e Antonio Romane. Atrás, Sidnei Bueno, José Carlos Bortolato

Em 25 de agosto, em um artigo assinado por Ernesto Almeida, pseudônimo utilizado por José Rodrigues, o alvo era a ultraconservadora Liga da Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a TFP, organização acusada de apoiar a ditadura. Em determinado momento, o artigo reproduz uma fala do então deputado Chopim Tavares sobre a TFP:

“São uns débeis mentais, merecem compaixão e tratamento com psiquiatra”. E o autor do artigo complementa: “Que eles são débeis mentais, concordamos. Discordamos apenas no que eles merecem…”.

O artigo é encerrado com outra observação do deputado sobre o bispo Dom Geraldo Sigaud, que havia declarado que o diabo era comunista”, além de ser um dos fundadores da TFP: Esse bispo tem, psicologicamente, 200 anos. Coragem e rebeldia eram ingredientes indispensáveis nos textos daqueles jovens jornalistas.

Com a decretação do AI-5, as dificuldades se multiplicaram: “Mudamos a linha, partindo para reportagens ao invés de artigos. Foi o período em que os colaboradores deixaram Ourinhos e, confesso, a coisa perdeu a graça. Não havia mais pique”. O jornal ainda publicou mais quatro edições em 1969, mas encerrou suas atividades naquele ano.

Criador do Tempo de Avanço, José Rodrigues trabalhou no jornal O Estado de São Paulo durante 30 anos.

José Rodrigues se tornou correspondente do jornal O Estado de São Paulo, foi editor da seção Interior em 1976, e permaneceu no jornal até 2006. Antônio Romane deixou Ourinhos no início de 1971, trabalhou na Editora Abril e no Sindicato dos Jornalistas, onde foi diretor cultural e editor do jornal da entidade. Editou ainda O Escritor, publicação da União Brasileira de Escritores.

Antonio Romane trabalhou em grandes jornais brasileiros.

É Antônio Romane quem melhor define a experiência de fazer o Tempo de Avanço: “Era uma corrente que não se resumia ao jornal, era como que uma confraria cultural; teatro, cinema e amores iam de par”.

 Para produzir essa matéria a equipe do Jornal Biz pesquisou em: “1968 – O ano de não terminou”, de Zuenir Ventura; Coleção do jornal “Tempo de Avanço”, disponível em www.tertuliana.com.br/docs, além do site do jornal Metrópoles: https://www.metropoles.com/entretenimento/literatura/zuenir-ventura-1968-e-um-personagem-que-teima-em-sair-de-cena. O Jornal Biz entrevistou José Rodrigues e Antônio Romane.

Imagens: Acervo de Antonio Romane, redes sociais.

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